A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

«É então que inicio viagem. Levo o meu saco de Primavera onde tudo cabe. Cada leitor pode colocar sempre algo mais em homenagem ao equinócio.»

Um saco de Primavera foi do que me lembrei.

Hoje é dia vinte de Março. Há um sol que poderia ser morno, não fora o vento frio da montanha que sempre assola os sonhos. Lembro-me de há sete anos receber a notícia do nascimento de uma menina. Também estava sol, mas à porta do teatro, a meio da tarde, senti-me envolvida numa espécie de concha. No meu saco de Primavera cabe esse dia.

Frutos. Clementinas porque me agrada a cor. Romãs antes de tempo. Cerejas quase no seu tempo. Frutos com nomes de mulher. Botões de magnólia a abrir e a quererem exibir a sua cor. Sei bem que a maioria das magnólias já se vestiu e se despiu. São agora absolutas árvores verdes. A tua voz a constatar – por estes lados existem tão só magnólias envergonhadas.

Rostos. Sorrisos a dizer bom dia. Faces afogueadas pelo brilho da manhã. Dedos que se levam aos lábios como se beijassem. Um olhar que nos transporte para um lugar sem sombras, que não sejam as das árvores na terra batida de um parque. Ou de tudo o que cresce tocado pela luz. Umas As mãos a quererem dizer – fica comigo.

Dragões. Dragões que voem. Um corpo onde nasçam asas coloridas sobre a transparência de um vestido preto. Mangas que desmaiem até aos ombros e exponham a pele nua dos braços. O nó embriagado vulnerável ao vento. O último instante oferecido. Subir às árvores com uma carta escrita na mão. A letra cuidada onde se possa ler – vem e voaremos.

Olhos. Pintados de verde. Como a água quando cai sobre a erva. Um porto que chame sem olhar para trás. A voz invisível numa vela acesa. Postais ilustrados de desvairadas cidades. Reflexos de danças improváveis. Manifestações divinizadas nas roupas de um vagabundo. A ondulação das palavras ocultas – ouves o sobressalto?

Escadas. Para descer até à luz. Ou para subir ao oceano. O movimento enlouquecido das vagas que trazem nomes escritos. A estranheza da espuma volátil quando expira. O entendimento da água e do sal. As marcas dos pés na areia numa torrente de passos que sabem para onde ir a cada rebentação – segue-me!

Cometas. Guardados em caixas de pele frágil. E os homens sentados a aguardarem o dia perfeito. Talvez nesse dia o som das suas vozes se incendeie. Arrebatados são os segredos da serenidade ou os mistérios da melancolia. Numa persistência invulgar esperam que a língua amadureça e vença a estranheza nas palavras – meu amor.

Cintilações. Todas as que a memória reserva em abastança e comoção. A cegueira táctil à claridade. O olhar pausado na sombra abrupta. A tremura da noite estrelada ou a firmeza da luz sobre corpos repousados. O fulgor tremeluzente do rosto que esperávamos. A lentidão das pestanas a queimar a incerteza. E dizes – escurecem agora os dias mais tarde.

Respirações. Labaredas de ar a moldarem o peito. Batimentos cardíacos. Impulsos cinzelados de diástoles imperfeitas. Crescer com o sobressalto das sementes. Ter na mão cada partícula de ar. A menina faz hoje sete anos e já soprou as velas. Eu continuo a procura incessante da delicadeza naquela concha de sol morno. Anoitece, coloco as mãos sobre o peito e penso – olha como arqueja.
É então que inicio viagem. Levo o meu saco de Primavera onde tudo cabe. Cada leitor pode colocar sempre algo mais em homenagem ao equinócio. Prometa, desde já, que nada perturbará este meu anseio de subir ao eco da pureza onde é vivo o silêncio.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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