A última semana recuperou para a ribalta a venda de seis barragens no Douro pela EDP à Engie. A operação não está enquadrada como venda, mas, em bom rigor, foi mesmo uma venda. Já lá iremos porque para perceber do que se trata, primeiro é preciso perceber como se tratou. Aviso já, caro leitor, o assunto tem tanto de aborrecido pela tecnicidade como de enervante pela desfaçatez.
A EDP vendeu a concessão das seis barragens por 2,2 mil milhões de euros. Como as barragens são propriedade do Estado, a elétrica trespassou a concessão à empresa gaulesa e, para o fazer, precisou de autorização estatal, via Ministério do Ambiente.
O Governo foi atempadamente alertado para o risco de a EDP estar a desenhar uma eufemística estratégia de planeamento fiscal agressivo. O mesmo é dizer que estava a preparar esquemas para não pagar impostos. Teoriza-se uma cisão seguida de fusão que na prática não é mais do que uma venda.
No debate parlamentar com o Governo, realizado há uma semana, o presidente do PSD, Rui Rio, que dá sempre um tiro no pé depois de acertar no alvo, ou vice-versa, desta vez atirou a matar quando, diante de António Costa, explicou o caso de forma cristalina: «A EDP vendeu o direito de exploração de seis barragens (…) Montou um esquema para tentar não pagar impostos. Num dia cria uma empresa com um funcionário, no dia seguinte passa a exploração das seis barragens para essa empresa. Nesse mesmo dia vende essa empresa ao consórcio e o consórcio, um mês depois, começa a extinguir essa empresa e a dizer que é redundante».
O primeiro-ministro começou por fazer-se despercebido com enésimo recurso ao «à política o que é da política, à justiça o que é da justiça». O lema de António Costa devia ganhar novo verso, pois além das dúvidas jurídicas, existem duvidosas tecnicidades fiscais: «ao Fisco o que é do Fisco». Costa notou que o Governo só interveio no processo para autorizar a transferência da concessão, defendendo que eventuais responsabilidades fiscais ou jurídicas ficariam a cargo da Autoridade Tributária (AT) e do Ministério Público. Depois lá acabou por garantir ficar «perplexo» se o Fisco não investigar uma «construção, no mínimo, criativa».
O primeiro-ministro ignora, porém, que esta é uma questão política, não só porque carecia de autorização governamental, mas sobretudo por estar em causa o dever estatal não observado de proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, em especial das populações onde se situam as barragens.
Há mais. Ainda em setembro, a oposição (PSD, Bloco, PCP e CDS) aprovou uma alteração à Lei do Orçamento do Estado (OE) para criar um fundo de apoio às populações daqueles territórios com as receitas do trespasse da concessão das barragens, estimando-se o pagamento de 110 milhões de euros de imposto de selo. PS e PAN votaram contra. Também há uma semana, e confrontado pelo PSD, António Costa reconheceu com candura que o Governo ainda não aprovara o decreto lei para criar aquele fundo, aprovação que o OE estipulava ter de acontecer até 16 de março último.
O enrolado novelo legal torna difícil saber se havia lugar ao pagamento de IMI, IMT, porém o negócio implicava o pagamento de 110 milhões de euros de imposto de selo bem como do IRC sobre as mais-valias da venda. Por isso mesmo é que a EDP alienou os direitos de exploração através de uma cisão e a Engie adquiriu os mesmos com uma fusão por integração, acedendo assim a benefícios fiscais assegurados pela isenção ao pagamento de impostos por parte da elétrica detida por capital chinês.
O Governo tinha em sua posse todos os elementos relativos ao negócio e nada fez. Atuou pela inação porque às vezes a melhor ajuda é ficar quieto. Mas não calado, pelo menos neste caso, pois em finais de dezembro o ministro do Ambiente, Matos Fernandes, salvaguardava: «Os bens de domínio público não pagam IMT, não pagam IMI, não pagam imposto de selo na sua transmissão física. O negócio societário em torno da venda destas seis barragens poderá vir a pagar uma outra componente do imposto de selo. Essa componente do imposto de selo só é paga no ano de 2021». E acrescentava que só a 20 de janeiro se poderia saber qual o valor a pagar, se o houvesse: «Repito: se vier a haver lugar ao pagamento dessa parcela do imposto de selo, ela será naturalmente feita mais à frente e a verba será depositada [no novo fundo]».
Em fevereiro, o Bloco de Esquerda quis saber o porquê de o Governo ter mudado a lei do OE2021 que fez com que o imposto de selo associado a reestruturações de empresas deixasse de se aplicar ao trespasse de imóveis. Este domingo, o Ministério das Finanças assegurou que as mudanças que o Governo propôs não têm «qualquer relação» com «qualquer operação em concreto, em particular a operação de venda de barragens da EDP».
É mais um exemplo do longo e bafiento rol de negócios urdidos por privados com a complacência, quando não conivência, do Estado. É a privatização dos recursos da população contra o interesse nacional. Não estão em causa graves crimes de corrupção, claro, o que está em causa é a não defesa dos interesses dos cidadãos, não acautelados e olimpicamente ignorados.
Um Estado sempre tão lesto na cobrança de impostos ficou impávido e sereno defronte de uma engenharia financeira que conhecia e feita para não pagar os impostos devidos. A novela jurídica entre a AT e a EDP vai agora começar, mas tem um argumento bem conhecido. Só falta saber se vai sequer acabar.