Quem lia um livro em papel, um jornal em papel, um panfleto, nunca corria o risco de, entre uma página e outra, ser agredido por um qualquer comentário inoportuno do vizinho. Mesmo quando calhava fazê-lo no café, o pior que podia acontecer era alguém perguntar se lho podíamos emprestar, mas quase sempre depois de o ter fechado e pousado sobre a mesa. Apenas há alguns anos, ler costumava ser uma conversa séria entre leitor e escritor e, quando não era assim tão séria, o mais provável era o leitor deixar que o som das teclas da máquina de escrever se sobrepusesse ao discurso e, pronto, não havia como estragar a leitura. Às vezes, a dificuldade em entender o escrito espevitava tanto a imaginação que se chegava a perceber a quantidade de folhas de papel necessárias para o autor se contentar com o tom do texto. Enquanto assim não fosse, o matraquear do teclado costumava ser, ininterruptamente, entrecortado pelo som do rolo ao ser impulsionado por um puxão brusco do papel. Ler e escrever requeria o seu tempo e concentração, já se vê. Duas coisas de que a maioria não dispunha, acabando por nos poupar a este constante dar de caras com vernáculo gratuito ou, pior ainda, com erros de toda a ordem e feitio. As análises de forma e conteúdo nunca faziam emperrar nada porque se restringiam, quase exclusivamente, às aulas de português. Elas próprias pouco dadas a considerar transcendências de linguagem ou a marca da máquina e do papel que cada autor preferia.
Na opinião de Roland Barthes, a coisa sobre a qual se escreve não deixa de interferir naquilo que se escreve. Ora, nesta perspetiva, acerca dos atuais escritores, além do matutar sobre as medidas do ecrã utilizado, sobre pouco mais nos poderemos debruçar. E, quanto à influência que este ecrã exerce sobre o que costuma ser escrito, a maioria das vezes, não parece ser lá grande coisa. O mais provável é o texto sair com as ideias torcidas e retorcidas, insultuoso e feio. Em nome da liberdade de expressão, argumentam. Também pode acontecer sair um texto em que a única preocupação visível é a de depreciar outros autores. Vivem-se tempos confusos: de um lado, os que reivindicam o direito a escrever, de qualquer maneira, sobre tudo; do outro, os que reivindicam o direito a interpretar, à sua maneira, qualquer coisa. Os primeiros extremam posições através de excessos de linguagem, os segundos extremam posições através de excessos de crítica. Entre uma coisa e outra, normalizou-se o insulto e a crítica como argumento. Uns chamam gordos a quem não gostam, acabando por agredir mais os gordos verdadeiros do que os visados. Outros sentem-se agredidos pela norma padrão da Língua, que não contempla a ambiguidade de sexos, e, pasme-se, até pela estética queirosiana. Na impossibilidade de recuperar o som disciplinado das máquinas de escrever e a solenidade do ato de lhes carregar uma folha em branco, imaculada, sem erros, clara nas ideias e na cor, resta-nos esperar que tudo isto não passe de dores de crescimento que, tarda nada, hão de desaparecer.