João Cutileiro, a poética do mármore e o P.D.I.

Escrito por João Mendes Rosa

«E assim continua a ser. Por isso se mostraram todos – políticos, agentes e gestores culturais – indiferentes à tua partida. Preferem o fadinho… é mais fácil de digerir»

Em boa verdade, afora duas ou três notas-de-rodapé, ainda assim ridículas, o desaparecimento de João Cutileiro passou despercebido – quando não mereceu mesmo um desprezo miserando – da quase totalidade do país. Se bem o conhecia, esteja ele onde estiver (continuará sempre a ser incómodo, inflexível perante as suas profundas convicções, isso sim) deve estar a desprender aquele inigualável sorriso de desprezo ante o néscio comum: o néscio-político, o néscio-crítico, o néscio-artista, o néscio-académico e até o miserável néscio-tirador-de-selfies… Mas eu não sorrio. Porque não posso. Porque sei quanto o João não merecia isto. Um dia de luto nacional pela morte de um fadista (ainda que brilhante) e o João nem a um minuto de silêncio teve direito naquele hemiciclo onde, já o dissera Eça, «se lhe colocarem uma lona será um circo». Nem o facto de Cutileiro ter doado ao Ministério da Cultura, através da Direção Regional de Cultura do Alentejo, todo o seu acervo artístico pesou para que a bandeira portuguesa fosse vista a meia-haste no mastro habitual do Palácio de Belém.

Acho que na verdade o país não se deu conta de que aquele polémico “D. Sebastião” (1972) marca “um antes” e “um depois” do papel social e político da arte (mundial). É certo que quebrou cânones estéticos; já sabemos que conferiu uma nova sintaxe à abordagem escultórica, mas a sua importância vale sobretudo pelo profundíssimo simbolismo que lhe adjaz. Porque ousou como nenhum oposicionista ao regime o fez, como nenhum gesto contestatário o conseguiu concitar o livre pensamento, o arbítrio reflexivo, a emancipação do cidadão acorrentado a uma pequenez que lhe fora tão violenta como tacitamente imposta, quebrantando radicalmente as peias da mentalidade situacionista e apática que sempre combateu. Não é exagero dizer que aquela escultura de Lagos foi a revolução percursora da do 25 de Abril: o abalroar da coluna-mestra do templo fascista português. O que aconteceu de análogo é que tal trovejo ideológico trouxe também a revelação da poética do mármore, a leitura da pedra enquanto elemento não apenas modelador, mas como página imaculada transmissora da ambivalência analítica que a poesia proporciona transfundindo para a matéria a possibilidade da abordagem bífida em suaves estrofes planiformes, que tornam belo o inconcluso, sedutora a insinuação, fascinante o enigma que o deus ignoto que existe em nós poderá decifrar…

Poucos souberam como tu – ó João – que a maior tentação do artista de hoje é comprazer-se em ser um mero «fazedor de objectos destinados à burguesia intelectual do ocidente». E assim continua a ser. Por isso se mostraram todos – políticos, agentes e gestores culturais – indiferentes à tua partida. Preferem o fadinho… é mais fácil de digerir.

Sim, tal como no tempo em que tiveste de te exilar em Londres, impera hoje o mesmo acomodamento à campanha larvar de descerebrização da cultura. Já nessa altura sabias que o problema não era só Salazar, «o problema era a mentalidade portuguesa». E essa ainda subsiste: uma mentalidade paroquial, moralizante, fatimista (que o Neo-Marcelismo corporiza na perfeição), que acamarada com a mentalidade marialva, burguesa e fadista. Ou seja, de dia vai à missa e à noite ao bordel. A ditadura, essa, é que é outra: rege-nos o senhorio repugnante de quem apaga a memória alheia, os méritos de quem ousou fazer, com amor, inovando, ao arrepio dos cânones, das capelanias, furtando-se ao lambebotismo e ao toque do clarim da chefatura boçal.

Disseste-me uma vez que o grande problema das pessoas é o P.D.I. Ingenuamente, eu atribuía ao acrónimo o significado conhecido de todos. Mas tu desfizeste-me as dúvidas: não, não é a Puta da Idade. É a Puta da Inveja! Pois é, João, tu soubeste bem o que isso foi durante a vida inteira. É o atributo mais evidente dos medíocres. Maldito seja o P.D.I.!

 

O autor escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO1990

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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