Um dos maiores prazeres de quem colabora em jornais reside por certo no cultivo de um certo arcaísmo comportamental como se porfia ritualista fora e sem a qual a escrita perde sabor e até algum sentido. Esperar, por exemplo, pelo renovo do lembrete do chefe de redacção é uma dessas anquilosadas formalidades, mas ainda assim justificadas se remetidas, em boa verdade, para quem, assumidamente, se compraz no referencial anímico que recorda as obrigações rotineiras colunísticas e que constitui, além de tudo, uma velha tradição hebdomadária; uma práxis de velhos profissionais do periodismo que ainda prezam as mangas-de-alpaca.
Tenho retratos dependurados que representam uma plêiade de arcaístas que me apraz preservar, até porque o sabor arqueológico da vida renova o encanto da mesma. Eu não me esquecera da crónica! Mas agrada-me a convocação para a vitalidade desta escrita por desfastio (adiante clarificar-se-á a razão de ser do termo), invadindo o cultivo voluntário de um insulamento intelectual que me irriga a alma. Sim, vivo alegremente o ensimesmamento existencial que, cultivado entre o ronronar de uma gata, canetas de aparo e o escrutinar dos canhenhos caligrafados e debuxados, cozidos à linha – conquista alfarrábica ou da Feira da Ladra – não me deixa efectivamente tempo para a frugalidade usual com que se urde a trama monocórdica dos dias indolentes que se passeiam e fluem: notícias cacofónicas, novidades mórbidas, relatos quotidianos que remetem para um mundo frugal ao qual não pertencem estes ossos milagrosamente adiados ao sarcófago.
em a propósito: há dias, falando com o Pedro Mexia sobre a solidão intelectiva e a vulgaridade instalada, demos por nós a invocar a figura de Tomaz de Figueiredo, porventura o maior escritor português de todos os tempos (confessou-me que seu pai, João Bigotte Chorão, tinha a mesma opinião – mau grado o autor de “A túnica de Nesso” continue a ser um conveniente desconhecido – ora, bem o sabemos – não tivesse sido ele avesso a diáconos editoriais ou pontífices da escrita ungida pelos óleos sagrados da especialidade). Ora é na pré-história das crónicas portuguesas que gosto de me exercitar, assumam elas a forma que lhe conferiu Eça e Ramalho – “Farpas” – “Crónica mensal da política, das letras e dos costumes” (Ramalho compendiaria depois as suas farpeadas em 15 volumes, 1887-1890; o segundo autor daria o nome de “Uma Campanha alegre” ao seu próprio volume (1890); ou como as delineou o não menos genial Fialho (“Os Gatos” – “Publicação mensal, de inquérito à vida portuguesa”, iniciada em 1890 e que contabilizou um total de 6 volumes).
Podia aqui fazer como Tomaz de Figueiredo no volume “Tiros de Espingarda”, em que a narrativa da confecção da crónica constituía a própria crónica: o aparafusar e desaparafusar a caneta no tinteiro; o estalar de chofre dos suspensórios no peito, a consciência afinal da sua própria inspiração e de que, no fim de contas – isto de escrever, é como nas mulheres e na lotaria… “há horas felizes”…. Mas não, esta é uma descrónica. A cultivação ociosa da escrita entremeada com a leitura de quem instruiu a arte de cronicar. E deixo-me levar pela conhecida máxima de Eça, segundo a qual uma crónica «é como uma conversa íntima, insolente, desleixada».
E neste propósito, enquanto tresleio relaxadamente o “opus magnum” de Fialho, lembro-me de meu pai – um cronista insigne, defensor acérrimo da imprensa regional e por isso só na mesma colaborava. Lembro-me de o ver desde sempre na sua biblioteca, rindo por vezes do que escrevia ou atafulhado deliciado nos almaços. Mas devia fazer-lhe imensa falta a companhia da figuração – segundo Fialho, recorde-se – do émulo bestial do crítico: um felídeo. O meu pai adorava gatos. Mas os bichanos estavam expressamente proibidos de entrar lá em casa. Vá-se lá saber porquê! Por isso lhe dedico esta crónica no mês em que faria precisamente 86 anos.
Neste assomo de nostalgia, o meu único conforto, enquanto vou cronicando, é ter a meu colo uma terna felina e releio deliciosamente em Fialho de Almeida o evangelho apócrifo de criação do dito figurino. «Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato. Ao crítico deu, como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronrom e a garra, a língua espinhosa e a câlinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcástico até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes, e terrível com agressores e adversários…»
Que descanses em paz, meu querido pai. E que esta descrónica te leve um pouco do que fomos ambos um para o outro…
Escritor
N.R.: O autor escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO/1990