Como tantos já o disseram, a pandemia ainda não passou e as sequelas ainda não são mensuráveis. Porventura, na história, haverá mais do que um parágrafo para falar “do tempo do Covid-19” e da forma errática como o mundo lidou com a pandemia.
Entre nós, e seguindo o que as televisões nos iam mostrando noutras latitudes, e em especial em Itália e Espanha, cantámos nas varandas e aplaudimos os heróis. Quais heróis? Numa pandemia não há heróis! Há vítimas e sobreviventes; há sacrificados e abnegados; há lutadores e há medo. E foi pelo medo que durante um par de meses Portugal resistiu ao novo coronavírus: escondidos em casa, qual guerra biológica, isolados e confinados reduzimos a zero o risco de contágio. O problema foi quando tivemos de voltar “à vida” e os novos contágios apareceram – destapou-se o estado de sucesso que o pânico tinha escondido e a pobreza veio ao de cima: os novos contágios apareceram em festas, pela parvoíce de alguns, mas foi essencialmente no país pobre e frágil da periferia de Lisboa, dependente dos transportes públicos, nos subúrbios apinhados de pessoas que se atropelam na correria para o emprego, nos parques empresariais onde se trabalha mais de 40 horas por semana para se receber 500 euros por mês e nas obras, onde nunca se parou, que os novos surtos puseram Portugal como o segundo pior país da Europa no combate ao Covid-19 e nos excluiu dos “corredores” de turistas europeus de que tanto precisamos.
Por isso, como escreveu Miguel Sousa Tavares no “Expresso”, e por muito que nos desagrade, «estamos a acordar de uma doce ilusão, assente em duas apressadas verdades: o heroíco comportamento cívico do povo português perante a pandemia a o exemplar desempenho do Serviço Nacional de Saúde. (…) É uma pena, mas ambas as supostas verdades são falsas». E o comentador explica, «o heroíco comportamento cívico português assentou no medo, puro e simples» E sobre os heróis sugere «os autênticos, os que não ficaram em casa: os agricultores, incluindo os imigrados, os pescadores, os camionistas que traziam os seus produtos para os supermercados e os trabalhadores destes que nos abasteciam, os que trabalharam nas farmácias, nas tabacarias que não fecharam ou no pequeno comércio de bairro, os trabalhadores dos transportes, os polícias, os voluntários que acorreram aos sem-abrigo, etc. E quanto ao brilhante desempenho do SNS, ele explica-se por uma simples razão: porque nunca esteve sobre verdadeira pressão. Trancados em casa, os portugueses garantiram que a parte do SNS dedicada em exclusivo à covid nunca ameaçasse rutura. E tirando os profissionais dedicados a isso, que cumpriram, de facto, o seu dever tudo o resto no SNS fechou cautelarmente mesmo antes de a epidemia nos ter atingido».
Olhando para trás, todos o sabemos, milhares de consultas foram adiadas, cirurgias ficaram por fazer com desfechos por vezes trágicos, mas de que ninguém fala porque a culpa foi do coronavírus, e tantos tratamentos que ninguém fez porque as pessoas tiveram medo de ir aos hospitais, e nos hospitais todos tinham medo de tocar nos doentes… Agora, que passámos do confinamento à realidade (ainda que os professores continuem confinados), vemos a realidade do país: um Portugal a duas velocidades, os portugueses ricos ou remediados e os portugueses pobres; os que têm emprego para a vida ou podem ficar em teletrabalho sem correr riscos e os outros, que têm de trabalhar sem horário e a ganhar o salário mínimo; os que são tratados por heróis pelo Presidente da República, que metem baixa quando deviam ir trabalhar, que se alimentam da riqueza produzida pelos outros, que têm mais educação e cultura, que frequentam restaurantes caros e se escondem em resorts isolados entre o Douro e o Alentejo à espera que os problemas passem, e os outros, os que trabalham mesmo que o vírus ande por aí; os que saem de casa para ir de férias e os que querem continuar a trabalhar cheios de medo de perder o emprego… Agora, que descobrimos o Portugal de sempre, o país desigual com 2 milhões de pobres, que continua na cauda da Europa, com tiques de novo-riquismo, olhamos invejosos para Espanha que com 29 mil mortos, pelo menos, provocados pela Covid-19, é tratado como um país com um estado que soube resolver e ultrapassar as maiores dificuldades, enquanto Portugal com 1.600 mortos por Covid-19 continua sem saber como fazer frente à pandemia. Agora, com os hospitais da capital a abarrotar, há doentes a serem transferidos para os hospitais de Santarém, de Castelo Branco e da Guarda…