Ao contrário do que a maré fazia supor, a União Europeia navega agora com a bússola ajustada. Não é a provavelmente utópica federação por que muitos clamam, mas o federar de forças que possibilita realizar algo até há pouco também utópico: a União Europeia vai emitir dívida conjunta para apoiar as regiões e os setores mais atingidos pela pandemia.
Não é ainda a luz que permite aclarar o futuro de uma UE cada vez mais irrelevante no mapa mundial, mas à luz do que foi a resposta aos efeitos do “crash” de 2007-08 é uma solução luminosa.
Pela primeira vez, a Alemanha aceitou emitir dívida conjunta em larga escala para que Bruxelas possa financiar diretamente despesas de outros Estados-membros. Serão assim atribuídas subvenções a fundo perdido aos países mais penalizados pela crise e com menor capacidade – devido ao elevado endividamento público – de lhe fazer face.
Os mais céticos, críticos ou pessimistas dirão que os 500 mil milhões de euros propostos pela iniciativa franco-alemã (cerca de 4% do PIB comunitário, enquanto, por exemplo, os Estados Unidos aprovaram medidas no valor de 10% do produto) são escassos. E não deixarão de anotar, com avisado e justificado temor, que Merkel e Macron (mais a alemã, claro) pretendem que, em contrapartida, os países sigam políticas económicas sólidas e uma agenda de reformas ambiciosa.
No entanto, desta vez as coisas parecem mesmo diferentes. Ao contrário do observado na crise das dívidas soberanas, agora a chanceler alemã percebeu atempadamente a gravidade da onda recessiva em formação e, mais relevante ainda, do sério e porventura derradeiro risco de desagregação diante da Zona Euro e, em resultado, do conjunto da União.
Tudo começa com o facto de ser a Itália, e não a Grécia ou Portugal, o país mais fustigado pela covid-19. Com uma dívida a caminho dos 150%, uma frágil e cada vez mais dividida coligação de governo a fraquejar, e o populista Salvini à espera da oportunidade de ouro, se as autoridades de Roma fossem deixadas à sua sorte, nem muita sorte evitaria o fim da moeda única.
E para azar dos frugais encabeçados pelo renitente holandês Rutte, o Tribunal Constitucional alemão acabou por ajudar, mesmo que inadvertidamente. É que ao porem em causa o programa de compra de dívida com que o Banco Central Europeu salvou o euro, os juízes alemães estavam também a ameaçar o entretanto lançado pacote de aquisições especificamente dirigido a financiar a resposta à pandemia. E, dessa forma, a empurrar a Zona Euro para o precipício e a UE para o salve-se que puder.
Merkel compreendeu que, sem argumentos orçamentais de monta, a UE não seria capaz de enfrentar a tormenta e, com o “empurrão” decisivo de Macron, tomou o comando da navegação. É certo que não poderá atirar borda fora as intenções dos ortodoxos da disciplina orçamental, mas com o eixo franco-alemão ao leme será mais difícil aos Países Baixos manter as velas arriadas.
Mas mais importante ainda, nesta crise, e com o que isso diz sobre crises vindouras, Berlim mostrou querer ser o farol de uma UE solidária e capaz de partilhar riscos. A aproximar-se do crepúsculo político, Merkel não quer ser a comandante que deixou o projeto europeu acabar como o Titanic.