No ultimo dia do ano, quando a China partilhou com a OMS, uma doença respiratória preocupante, com início num mercado de Wuhan, e identificado então um novo coronavírus (SARS-CoV-2). A Europa e até o resto do mundo encararam como mais uma “chinesice” e só um mês depois, se identificou a infeção como emergência de saúde pública internacional. Nessa altura já era tarde e o vírus tinha voado em aviões comerciais, passeado em TGV ou em luxuosos navios de cruzeiro.
Os sintomas da doença denominada Covid-19, assemelham-se aos de uma gripe, evoluindo os casos mais graves para pneumonia grave, falência multiorgãos, e morte, mas cedo percebemos que uma serie de pessoas são portadoras do vírus e permanecem assintomáticos ou com sintomas ligeiros, facilitando a transmissão que se faz por contato próximo (até 2 metros) ou através do contato com superfícies onde permanece durante horas ou dias, sendo transportado para a boca, nariz ou olhos. São as gotículas produzidas pela tosse ou espirro a via de transmissão mais importante, adquire assim a contagiosidade de algumas constipações e a letalidade da sua ascendência molecular do outro corona, que causou o surto de 2002-2003 na Ásia, mas por lá foi contido.
No início de fevereiro entidades europeias admitiam como “provável” a propagação global do vírus e em conjunto com a OMS emanaram e atualizaram recomendações, que os países foram seguindo, com avanços e recuos, deixando alguns responsáveis mal na fotografia. Percebemos hoje que as hesitações estavam mais carregadas de argumentos económicos e sociais do que razões sanitárias e a consequência foi a catástrofe principalmente nos países do sul da europa, onde os hospitais já vivem com recursos no limite.
Outra opção controversa foi a restrição ao uso de máscaras na população, uma vez que não havia qualquer evidência de benefício do seu uso, tal seria verdade se todos respeitássemos o distanciamento, o que nos locais públicos é impossível. Depois, todos vimos os exemplos de países ou regiões em que o uso de máscaras faz parte dos hábitos após o SARS em 2002 e 2003.
Tanto ouvimos falar em vírus que já nos esquecemos como estes seres que mal entram na espécie dos vivos, nos atacam e ferem até á morte. Ao longo da nossa vida vamo-los encontrando criando proteínas de defesa e em alguns casos safamo-nos bem, sem sequelas ou sustos de maior. Mas eles passaram milhares de milhões de anos a aperfeiçoar a arte de sobreviver sem viver, num modo que os torna numa ameaça.
Do nosso lado estão as vacinas que estimulam a produção de uma linhagem especifica de guerreiros e que nos filmes surgem de forma rápida e salvam toda a gente. Do lado do vírus o aperfeiçoamento baseia-se em melhorar a penetração nos recetores das nossas células modificando-as ou destruindo os códigos genéticos até à morte e, pior, desta forma o vírus vai criar milhões de cópias e nalgumas pode sofrer mudanças na maioria dos casos para pior. Ao falar de vírus os mais novos lembram-se de imediato da SIDA, Hepatites e os mais velhos da Poliomielite e da Gripe Asiática que por coincidência ou não, teve origem na China há 64 anos, presumindo-se que uma mutação de vírus em patos selvagens se combinou com uma cepa humana pré-existente e durou dois anos. Vale a pena ler os relatos da época e a forma como os políticos de então consideraram “benigna a doença”.
Na realidade o novo Cov 2 à primeira vista é insignificante, sendo constituído por um pacote de material genético envolvido por uma proteína, com um milésimo da largura de uma pestana, mas já paralisou a sociedade mundial.
Todos os dias ouvimos falar de esperança numa vacina ou em tratamentos que fizeram milagres noutros locais e que nos dão alento, mas ouvimos falar do mais de um milhão de doentes e o número de mortos que não pára de aumentar ultrapassando agora os 69.000.
No século passado cruzamos pandemias e crises económicas, que nem sempre estiveram interligadas, neste século estamos a viver a segunda crise económica e a primeira grande pandemia. Resistiremos? Claro que sim, mas preparem-se porque a forma como alimentámos o crescimento da economia baseada no turismo e no imobiliário com base no investimento asiático sofrerá de novo um revés, adivinhando-se mudanças radicais. E a ferida social que é o desemprego vai crescer tanto quanto demore a contenção. Por outro lado, o vírus veio responder às preces dos ecologistas e a atmosfera está mais limpa. Mas talvez a maior lição deste vírus vai para o populismo dos Bolsanaros, Trumps e dos Boris em contraponto com a sensibilidade do nosso Ramalho Eanes. Mas logo que possível venham daí esses Corono Bonds para revitalizar a economia e pagarmos as dívidas.
Os números em Portugal são o que se esperava após o encerramento das escolas e da proibição da maioria das atividades sociais, mas não nos deixam descansados e obrigam-nos a manter as medidas de contenção por muito tempo, permitindo que os Hospitais se adaptem. Ninguém pense que como num conto de fadas tudo termina de uma noite de nevoeiro para uma manhã de sol. Resiliência é a palavra de ordem. Mas mais importante do que a frieza dos números é que o seu vizinho do lado pode já estar infetado sem sintomas e a próxima grávida na sua inocência pode infetar toda uma equipa.
A estratégia está montada, os soldados no terreno porque a III guerra mundial já começou.
* Médico, Diretor dos Serviços de Medicina do Hospital Sousa Martins