Frimário

1. No dia em que José Mário Branco nos deixou, passou na RTP 1 um razoável documentário sobre o percurso do cantautor, compositor e produtor. Sem dúvida, uma figura central da música popular portuguesa. E referência cultural e política para muitos e muitos milhares, como é sabido. Posto isto, passemos ao documentário. O qual provocou em mim um misto de sentimentos contraditórios. Por um lado, é ponto assente que JMB foi o porta voz de uma geração combativa. Com uma postura ideológica construída numa luta por vezes inglória, mas sempre épica, contra a opressão, o mercantilismo, o obscurantismo e os fascismos. Uma geração embalada pela contracultura, mas que não se fixou na libertação do eu e quis actuar directamente na sociedade. Com um programa político e ideológico redentor. Parece um coro de anjos, verdade? Não, a coisa descambou num cântico negro. Quem acompanhou o percurso do cantor e dos seus compagnons de route, cedo detectou as debilidades desse acantonamento agit prop, desse vanguardismo milenarista: a superioridade moral, a incapacidade de acompanhar a realidade e a mudança, o facciosismo, a irredutibilidade, a intolerância. A certa altura ouve-se JMB verberar contra os «deploráveis anos 80». E contra as tendências musicais que passaram a entusiasmar a juventude, começando pelo disco sound e naquilo que JMB chama de «evolução da soul music» que acabou numa batida house que ele exemplificou. Ou seja, a juventude foi “transviada”, cabendo aos educadores de serviço, como JMB, trazerem o público para “bons caminhos”. Neste ponto, o Diácono Remédios não faria melhor. Porque é de uma caricatura que se trata. Muita gente, na qual me incluo, bebeu muito da consciência social e do inconformismo desta geração. Mas nem todos souberam, como eu julgo que consegui, distanciar-se a tempo dos alçapões e perversidades a que tudo isto conduzia. Uma distância que permite olhar para este documentário como um simples registo histórico. Datado. Tão honesto quanto cruel. Sem entusiasmo, com uma réstia de nostalgia, e uma ténue identificação. O registo de uma geração que envelheceu mal e se fechou em si própria, na companhia dos seus fantasmas. De JMB, fica a admirável combatividade e algumas composições felizes.

2. Reservo sempre um espaço para o comentário político de fundo. Ou seja, a opinação agreste, original. O gongorismo engraçadote. Com ademanes e tirantes. O pregão com cheiro a peixe. O opinamento enrolado em borboto. O coçar vigoroso dos tomates cívicos. A visão desfocada da sombra de Godot. A estatística que compõe ou desmente os nossos desejos. O lambuzamento dos nossos equívocos que tomamos por ideais. O empalamento crítico. O telefonema para uma linha de apoio que não existe. Todavia, prescindo. A política, sem a hubris dos predestinados, é um passatempo de amanuenses.

3. Para um francês médio, não existe um sentimento como a anglofobia, por muito que a tradição o queira inculcar. O que há é uma vizinhança ríspida, uma saudável rivalidade, cimentadas por um convívio milenar. Onde a sede mútua de conquista e a competição colonial deram lugar à aliança militar e, circunstancialmente, política. Nessa longa história, não faltam o humor e o simbolismo. Basta referir, como já o fez Shakespeare em “Henrique V”, que os franceses, durante muito tempo, se referiam à menstruação como “vêm aí os ingleses”, por ser o vermelho a cor característica dos seus uniformes. Mas sendo a anglofobia um exagero, não significa que, tradicionalmente, a anglofilia fosse bem vista. Pelo contrário, era motivo de chacota. Conta-se que, quando Luís XIV enviou Henriqueta, sua cunhada inglesa ao outro lado da Mancha, para negociar com o monarca inglês, Carlos II, seu irmão, uma aliança militar contra os holandeses, perdurou a indecisão em Versalhes sobre quem seria o emissário. No início, o nome indicado era de um aristocrata admirador das virtudes britânicas. Mas quando segredaram ao Rei Sol que o tal duque “até gostava da comida deles”, o brio nacional falou mais alto. E ficou desde logo assente, ou seja, decidiu o monarca que quem iria em missão de charme seria a cunhada. Sendo inglesa, bem podia gostar da “comida deles” à vontade!

4. Quando se quer comprar ou usufruir o que é bom, o mais natural é a conta subir. Isto quanto a bens e serviços quantificáveis, com um valor de mercado. Substituíveis. Ou, como se diz no direito, cousas fungíveis. Já quanto aos bens culturais, sucede precisamente o contrário. Quanto mais elevada a sua qualidade, menor é o preço e maior o benefício. Há livros, filmes, músicas, quadros, autores que são para sempre. Mas esse desiderato não é o resultado de uma escolha por catálogo, e sim de uma ambição. De uma navegação às vezes arriscada. Onde o mar aberto não aparece sem antes navegarmos pelos escolhos da tentativa e do erro. Afastar das nossas escolhas o pastiche, a mediocridade, os repentismos do mercado, é fundamental para crescermos. Chegar ao que nos define e nos molda, porque é de lá que sempre partimos. É lá que que estamos confortáveis no desconforto.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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