O enfado derramado do alto da cadeira professoral quase nos afogava a cada aula. Quando, no início do segundo período, um dos meus colegas se atreveu a questioná-la sobre a razão de, tendo tido a mesma nota no teste, na pauta lhe ter aparecido um 7 e a mim um 12, esclareceu prontamente: “ela é inteligente e você burro. Anule, anule…” Na aula seguinte, ao fazer a chamada descobriu que esse meu colega tinha mesmo anulado a matrícula à sua disciplina e o “paz à sua alma”, cruzado a vermelho na caderneta, saiu-lhe em suspiro. Acompanhado por mais dois ou três da turma, o “burro” lá se foi à vida que conseguiu e as aulas continuaram impávidas e serenas.
A pouca importância, que na década de 80 do século passado, os professores davam a alguns alunos nem sequer era apanágio desta professora. Era assim e pronto. Nesses tempos, como nos outros todos, era suposto os alunos irem à escola para aprender. Se tal não acontecia, o problema era exclusivamente da sua burrice e nunca dos programas ou de um qualquer professor desanimado com a carreira, com o parco salário, que complementava com umas explicações particulares, e com a distância a que lhe ficava o emprego. Ninguém podia ser obrigado a ensinar quem não queria ou não conseguia aprender. Isso seria mais ou menos como querer obrigar alguém a construir casas que não se dispunham a ser construídas de qualquer maneira, fazer fatos com tecidos rotos e pão sem farinha. Não podia ser. Havia que esperar que as casas se dispusessem a ser construídas como as outras todas, os tecidos se remendassem e a farinha aparecesse. Ensinar quem aprendia tornava a vida de professor simples e escorreita. Terá sido nessa perspetiva, de vida simples e escorreita, que a maioria dos professores de hoje iniciou a profissão há mais de trinta anos.
Mas, qual quê! Começaram logo por os mandar dar aulas para cascos de rolha, depois por ser avaliados e seguiram-se as carreiras congeladas. Já só faltava, porque a escassez de alunos aconselha a não se deixar ninguém para trás, alguém agora lembrar-se de que é para não haver cá mais “chumbos”. Coisa que, depois de se terem concentrado programas de seis anos em quatro e outras tropelias programáticas que tais aferidas por provas e exames nacionais, até soará a alívio à maioria dos docentes. Aliás, não fora o facto de tal ideia pressupor a deslocação do foco do ensino e da aprendizagem do aluno para o professor, que o “fim dos chumbos” teria assentado que nem uma luva nos ouvidos de qualquer um. Pois, finalmente, sem a pressão das avaliações, interna e externa, a comandar o lápis vermelho por entre resmas de questões e testes de alunos desinteressados da escola e dos seus saberes, cada professor vai poder regular as aprendizagens de acordo com o contexto. Que é como quem diz, ensinar o que realmente for útil e interessante para todos e cada um dos seus alunos. Isso pode significar mais trabalho e responsabilidade? De certeza que sim, mas lá que o “chumbo” como exceção, em vez da regra, vai pesar muito menos sobre as cabeças de professores, dos alunos e nos bolsos de todos nós, também é verdade.