A sagacidade com que, encostado no umbral da pastelaria, tirava as medidas a quem ia entrando, fazia desconfiar que viveria na rua mais por opção de vida do que por escolha da vida. Por entre bons dias tartamudos atirados a alvos incertos, respondia certeiro com um “compre-me um bolinho que ainda estou em jejum”. Como se em jejum não estivessem todos os que, por entre remelas esquecidas pela água do duche, lhe tentavam adivinhar a idade nas rugas escapadas ao pó da rua que a noite lhe colara? Mal acordada e ainda mais maldisposta, não apreciei por aí além a arte de mal me convencer a comprar-lhe um bolo. Se queria um bolo que o comprasse ele, que já há muito que eu fazia o mesmo, dei-lhe o que me pareceu que custaria o bom do bolo e continuei a mexer o café. Já com a chávena a meio caminho da boca, tive de lhe responder: “de nada”. Aquilo estava já a parecer-me um mau presságio para o resto do dia quando reparo no homem, que com o ar mais corriqueiro que se possa imaginar, pedia “aquela merendinha”. Não era uma qualquer, era a que ele escolhia. Já a caminho dos meus afazeres pensava em como o poder escolher a merendinha que se come ao pequeno-almoço será apenas umas das muitas formas de que se reveste a liberdade e custara só um euro. Um euro foi o exato preço da dignidade de poder escolher em vez de aceitar.
No fim do dia, já de regresso a casa e à terra pequena, penso em como teria sido o meu dia (e os meus afazeres) na cidade grande, se não tivesse encontrado aquele sem abrigo logo que saí de casa. Se não tivesse sido obrigada a instintivamente pensar que não era eu a responsável por lhe tratar de provisões, mas que, mesmo sem qualquer tipo de responsabilidade, me dispusera a fazer. Não falei dele a ninguém, não especulei sobre o seu destino ou apelido. Em boa verdade nem me lembrei mais dele até agora que reflito, de longe e a frio, na sequência das horas, das pessoas e dos acontecimentos, e me espreita por detrás de cada um deles e de todos ao mesmo tempo. Poderia até ter dado as mesmas respostas, no entanto, não teriam sido tão imediatas e genuínas. Poderia até ter tido as mesmas conversas, mas não teria sido tão franca e honesta. Poderia até ter chegado ao mesmo sítio, mas não com tão pouco esforço. O mais provável é não me voltar a cruzar com aquele sem abrigo, nem ele comigo. Pelo que nunca lhe direi mais nada sobre a história em que ele próprio também aparece ao início. Mais provável ainda é que, embrenhado no seu papel de pedinte, de desalojado de lides e compromissos, nem tenha reparado em mim no meio das centenas de vultos a quem mostra o dedo apontado à montra de uma pastelaria. Pior para ele. Ou será que é pior para mim e para os outros todos? Já nem sequer importa. No fundo, no fundo acabamos por nos resignar a reduzir tudo a trocas e contratos que nos aliviem de todas as cargas morais com que não nos entendemos, nem estamos interessados em entender. E assim é que deve de ser.