1. A justiça tem os seus quês. E há tantas justiças como as bocas e como as verdades que estas debitam. Sim, a justiça é sinónimo de verdade e a complicação de se aplicar é a mesma de descobrir a “verdade”. De encobrimento em encobrimento, de erro em erro, de medo em medo, o sistema, composto por pessoas, acaba por nunca apurar a verdade toda e por deixar funcionar as válvulas de escape do “não se conseguiu apurar”. Do mal o menos se não se acusar o inocente, o que, digamos, hoje é raro e constitui mais matéria de filmes e séries de TV. Em tribunal a maior parte das vezes são os culpados que arranjam maneira de se rir do acusador público e que dissimulam ou escondem o enredo da questão em causa. Em nome do seguimento das regras, em nome do direito e da democracia, vamos apurando o mais possível, sempre aquém do que seria desejável. Às vezes sonhamos com câmaras omnipresentes mas isso acabaria por ser uma maçada, por tirar o encanto à atividade dos inspetores da judiciária e dos procuradores. O “não se conseguiu apurar” é felizmente o garante da justiça democrática.
Polícia e tribunal foram durante séculos instrumentos insensíveis dos poderes instituídos, do respeitinho, da “lei”. Tão afinadinhos que bastava um “apertão” no momento certo para derreter a valentia do malfeitor ou do rebelde. Às vezes o desgraçado sucumbia à persistência do assédio físico do poder e a justiça era “célere” demais. Em casos como deserção militar, sublevação ou crime de opinião, assassinato de crianças ou jovens ou atentados à fé, a pressa de chegar à “verdade” incluía saltar degraus a quatro e quatro e despachar alguns para satisfazer a vontade da populaça. Esta era educada para ficar sedenta de sangue e gostava de assistir aos julgamentos, sentir os gritos dos queimados, o abanar do vulto pendurado ou a queda da cabeça no cesto debaixo da guilhotina. Cada uma dessas cerimónias resultava numa lavagem ao cérebro que era também uma lavagem à alma, que partia de regresso a casa lavada e purificada. Mas o cheiro da carne queimada persistia na roupa por uns dias. Para ninguém esquecer (o medo).
2. Quando a justiça de comportamentos que configuram crimes se faz pela denúncia na comunicação social correm-se dois riscos: ou se trata de uma “compra”/ oferta de informações que deviam estar protegidas ou então, sob a capa do interesse público, se acabam por fazer acusações que é muito difícil provar na integralidade com coerência, resultando assim num exercício voluntarista (sensacionalista) em que se “quer” mesmo chegar a uma narrativa. Quando a linguagem e as acusações excedem os limites, acaba por se cair no domínio do Direito de Resposta (DR), que é uma das coisas mais engraçadas a que se pode assistir. Nos jornais o ofendido na primeira página acaba com o DR numa página escondida do interior. No telejornal, acaba por aparecer em texto, no final, vários dias, semanas ou meses passados sobre o acontecimento, sem qualquer enquadramento e com letra miúda e uma voz monocórdica a 100 à hora a despachar o assunto. A justiça faz-se e também aqui a que velocidade!
No presente a atualidade reivindicativa sufoca na imprensa o leitor/ espectador comum diante de casos em que este é sistematicamente enganado, seja pelo excesso seja pela ausência de caminhos para a verdade, o que impede uma avaliação justa dos grupos profissionais e das entidades patronais. A propósito de greves, reivindicações, protestos, torna-se quase impossível, para o leitor ou espectador, determinar quanto cada profissional leva para casa, como evolui uma carreira, a justeza de um subsídio ou de um suplemento remuneratório, o grau de penosidade de uma profissão, a própria percentagem de adesão a uma greve, que acaba por ser despicienda logo no dia seguinte ao fim da mesma. O safanão mediático e a “ilusão” do leitor/ espectador tornam-se no único objetivo da informação veiculada, não havendo por parte dos media qualquer capacidade ou vontade para apurar a verdade (a justiça) já que cada profissional, cada classe e cada associação representativa se fecha em copas, enganando se possível ou escondendo a informação mais sensível. Quanto à penosidade e ao verdadeiro valor social das profissões (que deviam determinar a retribuição remuneratória, juntamente com as qualificações), graduem lá justamente um trabalhador do lixo, um professor, um enfermeiro, um polícia, um médico, um cozinheiro, um jornalista, um camionista, um juiz, um piloto de avião, um estivador, um operário têxtil, uma costureira, um bancário, um padre, um militar. Façam uma lista ordenada (ou duas, segundo as qualificações) e ponham-na(s) em debate. Difícil, não é?
3. A justiça, sendo assim, pode dar para rir (passado algum tempo de “nojo”) e é assim que se faz “Histórias de Justiça,” uma rubrica da TSF de 2/3 minutos (mais de cem episódios disponíveis no site da TSF) em que se recordam casos da justiça de antigamente. Casos caricatos como o espancamento bárbaro de um burro, a agressão de um leitor descontente ao jornalista por não ter gostado do seu texto ou um rapto de namorada que acaba em casamento são a imagem do Portugal do séc. XIX. Hoje também pode dar para rir.