Termidor

1. Há cerca de três semanas, estive presente durante parte de uma sessão pública, promovida pelo PS da Guarda. Anunciada como “auscultação das forças vivas da sociedade civil”, contou com a presença de personalidades de diversas áreas, coletividades, autarcas, etc. Como convidada de honra, a secretária nacional do PS. Estive lá, não obviamente enquanto cidadão, mas em representação de uma associação ambientalista de que faço parte. O objectivo era colocar duas questões pertinentes e concretas, de interesse local. Supostamente, para serem encaminhadas para instâncias decisórias, ou o programa eleitoral do PS. A empreitada parecia simples. Mas cedo percebi a verdadeira natureza da sessão. Os dirigentes locais socialistas iniciaram os trabalhos com intervenções em tom de comício, completamente descontextualizadas. Gente estimável, mas abusando do discurso redondo. Salvou-se a intervenção do presidente da federação distrital (que entretanto se demitiu), com momentos uns furos acima do resto. Mas o pior ainda estava para vir. Usando da palavra, a convidada de honra, cedo mostrou ao que vinha: pastorear as “forças vivas” locais, moderando os ímpetos reivindicativos. Para isso usando um argumento decisivo: “eles”, os eleitores estão cada mais «castigadores». Portanto, cuidado com o que pedem! Só coisas razoáveis e supervisionadas por uma comissão de sábios no Largo do Rato! De resto, apresentou um país beatífico saído dos quatro anos de governação da geringonça, muito próximo de um paraíso na terra. Mas o que mais me irritou foi o expediente oratório da duplicação de géneros: todos e todas, cidadãs e cidadãos, etc. Se há coisa que me tira do sério é este tique absolutamente ridículo e linguisticamente aberrante. Portanto, durante quase uma hora, o painel de palestrantes da organização deu a entender que queriam escutar os anseios do auditório. Mas o que se viu foi propaganda, condicionamento, paternalismo. Estranho, ou nem por isso. Ora, quando finalmente chegou a vez de o auditório se expressar, açambarcou a palavra um autarca socialista. Deslumbrado com a oportunidade, aproveitou para uma extensa e bocejante alocução em tom de campanha eleitoral. Eu estava quedo e mudo, fascinado com a retórica. Parecia o discurso avinhado típico de casamentos e baptizados. Todavia absolutamente convencido do que vinha a seguir. Ou seja, os mesmos de sempre monopolizando a assembleia para darem curso à vaidade. E, afinal, ninguém estar interessado em ouvir, mas em ouvir-se a si próprio. Ficando a maioria dos presentes privados de fazerem chegar as suas mensagens. Sentindo, legitimamente, que vieram ao engano. Porque é que não foi definido um timing e sequência das intervenções? Porque é que não foram privilegiadas as intervenções da sociedade civil, em vez dos militantes, que têm os seus locais próprios para se fazerem ouvir? Quanto a esta última pergunta, há uma resposta óbvia. O PS dificilmente abandonará o seu jacobinismo, onde as coisas são sempre decididas de cima para baixo. E a sociedade civil é um simples elemento decorativo, escalonada segundo o seu interesse do ponto de vista clientelar. Quando percebi que já tinha visto o essencial, saí de mansinho. Mais morto que vivo. Lamentando ter perdido uma sessão de ginásio, ou de leitura. E as tais duas perguntinhas, é claro, ficaram à espera de melhor oportunidade. Este país não é para coisas simples e transparentes.
2. Lisboa está atulhada de turistas. Os negócios florescem. De novo o berço para muitas e desvairadas gentes. Não o umbigo do mundo e o sumidouro da nação, como nos idos de quinhentos. Não o ralo de um país falhado, retratado em tons expressionistas por Eça em “A Capital”. Não! É o turismo de massas no seu esplendor. Multidões de zombies vagueando. Mortos pelo cansaço de querer ver tudo e não ter tempo para ver nada. Ou enlatados nos tuk tuk. Ou debruçados nos autocarros panorâmicos. Ou numa fila gigantesca para qualquer coisa: um pastel de Belém, ou as bilheteiras automáticas do metro. Ou montados numa trotinete. A vocação cosmopolita da capital já fez germinar as flores mais preciosas: a troca de saberes, de artes, de produtos, de ambições. Resumida agora ao ócio programado. Onde o requinte, a curiosidade e a vertigem de outras épocas descambou na adrenalina mole, na cegueira e numa espécie de escravatura hedonística.
3. Estar diante de quem estamos perto tão completamente como se fossem estranhos. Desligar do entorno, mas implicar o entorno. Ouvir com delicadeza. Rir como se fosse a primeira vez. Imaginar sem fantasiar. Recriar cada perplexidade como se fosse nossa. Dar sem medo e sem medida. Deixar que os olhos cantem e a música instale as figuras do retrato. Adormecer.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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