1. É tudo muito rápido. Morre-nos (o) a companheiro (a), também já na casa dos 80, e de repente encontramo-nos num lugar esquisito povoado por dezenas de múmias como nós, a olharem-nos com olhar aflito ou já acomodado. Foi difícil aos filhos, sempre tão ocupados com as suas profissões, obter lugar tão rápido para meter ali o pai/ a mãe, mas nada que um bom conhecimento ou uma cunha bem metida não conseguisse resolver. De um momento para o outro o mundo de objetos e vizinhanças que construímos fica reduzido a uma cama, um roupeiro, uma mesinha de cabeceira. E um candeeiro que não nos autorizam a ligar a não ser em caso de última necessidade. Um botão para pedirmos ajuda, às vezes um vizinho barulhento e aí estamos nós instalados para a meia-dúzia de anos que nos restam, com “aquele” lugar fixo no refeitório. É assim um lar de idosos.
Quando chegamos aos 60 e poucos e o caminho começa a descer, começamos a ter a perceção mais certa de que “aquele momento” está ali ao virar da esquina. Até essa altura nunca tínhamos pensado bem nesse momento, mas a reforma e os funerais das pessoas que conhecemos de mais perto deixam mais espaço para as tontices e para essa revolta surda de não sermos imortais. A questão do além vai entusiasmando alguns mas cada vez menos, mesmo os religiosos, que sabem, olhando para os tribunais terrenos, que seria impossível um juízo final em que uma entidade superior decidisse dar uma eternidade de repouso ou de inferno por atos de que muitas vezes não fomos totalmente culpados. Cada caso seria mais difícil de decidir que o outro. Resta enfrentar a dita cuja, esperando por ela de frente, se possível sem dor ou com uma dose de morfina. Quanto ao inferno, ele mora cá.
2. O mundo dos lares da terceira idade, sendo o “mal menor”, não é um mundo isento da violência. É um mundo como os outros. De pessoas, humanas. Em resposta à violência de isolar um velho dos seus próximos e à própria violência do internato, o velho é capaz de construir com os seus novos vizinhos atitudes de indiferença, desprezo, coação e mesmo violência. Se lhe restar um bocadinho de cabeça, é capaz de congeminar e provocar questões de heranças e partilhas que não lembrariam ao diabo. Se só tiver sobrinhos, vai ter de premiar aqueles que o vêm visitar mais vezes. Se tiver filhos e os abominar, pode arranjar maneiras de ir escorregando ajudas aos menos abomináveis ou de deserdar os outros. Outra hipótese (já aconteceu) é o idoso entrar em trabalho de “apaixonamento” por uma qualquer flausina do lar, que lhe vai assegurar o desvio bem intencionado dos seus bens, para desespero dos “legítimos herdeiros”.
Neste espaço concentracionário, os velhos, ultrapassado o trauma da separação da sua “casinha”, aliam-se, para o bem e para o mal, em grupos de cumplicidade e isso traz-lhes um bem tremendo: a confiança e a comunicação. Muitas vezes já nem se importam de não ser visitados, habituados que estão a não sê-lo. “Eles têm tanto que fazer!” ou “Os filhos dão-lhes muito trabalho!” são as respostas às provocações feitas pelos mais visitados. Por outro lado, as diferenças de origem social e geográfica e a incapacidade de apurar o passado de quem ali está dão aos velhos uma liberdade de criar a sua própria história, uma certa “omnipotência”.
3. “A máquina de fazer espanhóis”, livro extraordinário de valter hugo mãe (assim com minúsculas) que acabo de ler e me deixa sem fôlego, é uma história que prova que um velho é um homem e que ao entrar no lar não perdeu o passado. Pelo contrário, um velho num lar, mesmo quando sabe que pode enganar os seus novos parceiros que não conhecem a sua vida, está condenado pela solidão a reencontrar-se com o seu passado que lhe surge esparramado na frente a cada atitude que sente vontade de ter. Sim, foi generoso, teve as suas glórias, mas também os seus momentos de cobardia e indignidade. Não foi capaz em certos momentos da vida de enfrentar o seu destino e de lhe dar um desvio, pelo menos de 90 graus. Enganou, foi enganado. Sujeitou-se, acomodou-se, outras vezes fez birra ou só pensou em si e não foi capaz de enfrentar a vida. Nesta história, um grupo de velhos lúcidos é capaz de tornar os seus membros cúmplices, amigos, inseparáveis, de consolar nos piores momentos, de fazer acreditar nos mitos que criaram e de criar um mundo de afeições que dói de repente perder. Para além desta revelação, António Silva, herói da história com 84 anos, descobre que a vida se faz de acasos e hábitos, que importa aproveitar, deixando-a um pouco à deriva. Forçá-la não.
Na verdade, somos todos Silvas. É só esperar.
(valter hugo mãe, “A máquina de fazer espanhóis”, Ed. Alfaguara, 2010)