Retiro da estante o opus magnum de Marshall McLuhan, vindo a lume no já longínquo ano de 1962 e ao qual regresso amiúde para me comprazer numa reflexão que hoje se pode reputar de profética: “La Galaxia Gutenberg: la creación del hombre tipográfico” (adoto o título da edição espanhola, pois suponho-o mais conforme ao conteúdo da obra) onde a ideia de “Aldeia global” aparece postulada pela primeira vez, tão bem escalpelizada por Umberto Eco dois anos depois, no seu “Apocalípticos e integrados” (1964). McLuhan, prognosticando a inexorável expansão do senhorio eletrónico, tributava em jeito de despedida um imenso louvor à imprensa escrita, já por ter transformado profundamente o pensamento humano desde o século XIX, tornando-o mais lógico e discursivo, já por ter sido uma das expressões mais visíveis da própria liberdade humana – o direito à opinião. A civilização da cultura escrita dava assim lugar, com a chegada da televisão, à supremacia imparável do mundo audiovisual; arrebatador, totalizante.
Contudo, a mudança do paradigma de comunicação social traria implicações mais profundas do que seria de esperar. O seu advento alterou drasticamente o sistema cognitivo de toda a sociedade, geradora agora de indivíduos supostamente informados, mas em cuja mentalidade se instalou a incultura como coabitante quase inapartável. Já sabemos que ler implica uma predisposição cultural determinada, fomentar capacidades e desenvolver conhecimentos: é uma atitude genuína, ativa e livre, que nos capacita para o entendimento de que somos seres pensantes e não meros repositórios de informações desconexas e padronizadas. Ante a fugacidade da imagem e do som, a escrita perdura em nós como um eco que matura e se depura.
A transformação de que falámos atrás, que tornou o “leitor” (e o “leitor de jornais” em particular’) um ser acaico, prostergou também a dimensão comunitária da leitura e, consequentemente, as tertúlias e, após estas, o próprio conceito de café – paulatinamente substituído pelo snack – outro ícone da fugacidade quotidiana.
Dá que pensar a afirmação de Giovanni Sartori (“Homo Videns: Televisione e Post-Pensiero”, 1997) de que estávamos a substituir o Homo Sapiens, produto da cultura escrita, pelo Homo Videns, fruto da cultura audiovisual. Mas seria estulto ter a veleidade de combater o mundo globalizado ou tão-só a supremacia do visível sobre o inteligível. Todavia a resistência – essa palavra mágica que tem empalidecido todas as manifestações do totalitarismo no mundo – acontece. A imprensa é disso exemplo; a regional ainda mais. Os jornais são focos tenazes de resistência e esteios de uma cultura que não perecerá de todo enquanto houver mentes insatisfeitas e dissonantes: «Só os peixes mortos seguem a corrente» – já agradeci pessoalmente ao Rui Chafes (“Sob a pele”, 2016) esta reflexão. Pertenço, sem orgulho, a uma minoria que resiste – e um tanto decadentista, reconheço – que encontra no ato de ler o jornal um dos maiores prazeres. E qualquer mesa de café – dos poucos que ainda há – com um par amigos em redor, alcança a recriação deleitosa dos salões oitocentistas de antanho.
Este longo introito para dizer que o semanário O INTERIOR – que no presente número cumpre a milésima edição – é um bastião de resistência multímoda. Por um lado – sem ser nunca localista –, tem cumprido uma linha editorial atinente a dar voz a uma região fragilizada pelo iníquo centralismo administrativo português, sobraçando desassombradamente a causa das populações mais desfavorecidas; por outro, tem-se pautado por garantir aquela “informação de proximidade” que só os verdadeiros órgãos de imprensa regional sabem alcançar. São mil semanas de uma escrita de adjacência, que torna ainda mais fortes os laços quem unem o leitor e o articulista, numa relação que se autentica imediatamente no plano comunitário – fenómeno que não acontece em nenhuma outra expressão escrita ou informativa. Tudo isto, com um valor estético acrescido fazendo jus à convicção de dois grandes colunistas – Gabriel Garcia Márquez e Mario Vargas Llosa – de que o jornalismo bem feito chega a ser uma obra de arte. Felicito O INTERIOR na pessoa do seu diretor, Luís Baptista-Martins, e todos os que nele colaboram e colaboraram, por este longo trajeto de resistência que nos vai permitindo viver e saborear a mágica “Galáxia Gutenberg”.