Foi Horácio que, nas “Odes” (II, 10, 5), fez o primeiríssimo diagnóstico dessa que se viria a revelar uma perturbação letal para as sociedades de todos os tempos; e, mau grado a mesma se tenha vindo a dissimular com maior ou menor sucesso no devir dos tempos, supomos que se cumpriu cabalmente mais de vinte séculos volvidos. A patologia tem-se revelado como um dos distintivos mais lúcidos e emblemáticos dos nossos dias. No essencial, a maleita tem consistido no cultivo de uma conduta vivencial que se contenta em governar o seu quotidiano almejando, a todo o transe – pesem embora arbitrariedades e injustiças sociais em presença – o bem-estar e a promoção individual; em fazer da vida um repositório de acomodamentos e aceitações tácitas; de renúncias ideológicas e de concessões éticas atinentes a garantir a tranquilidade pessoal necessária a uma existência incólume a desassossegos e perturbações que possam significar, no fundo, a abdicação de tudo quanto perturbe a mera gestão biológica da funcionalidade psicossomática de cada um.
A contagiosidade da enfermidade tem vindo a revelar-se gradual, mas galopante e atingiu hoje contornos que raiam atributos epidémicos nunca antes registados. Em Portugal, o maior estratega da institucionalização da “aurea mediocritas” foi obviamente Salazar. Mediante o táctico estabelecimento de alianças previsíveis e cumpliciamentos com sistemas institucionais tidos por estruturalmente inabaláveis, o tirano realizou contumazes investidas víricas empossando como portadores das mesmas figurinos programáticos deliberados: o analfabetismo, a incultura, conceitos perversos de liberdade, o favorecimento, o clientelismo, o cerceamento de direitos fundamentais ou tão-só o eficientíssimo “temor a Deus”. A estes subterfúgios adjazia ainda a “santa obediência” – auscultada do púlpito, lida nas paredes das escolas primárias, ouvida dos altifalantes da Emissora Nacional («Se soubesses o que custa mandar, gostarias de obedecer toda a vida», recorde-se a frase do ditador) – e o amor à pátria (ou melhor, a um determinado conceito de pátria), estratagemas pelos quais conseguiu infectar grande parte da sociedade portuguesa.
Mas quando a “aurea mediocritas” se presumia instalada e inabalável, a sorte era-lhe traiçoeiramente adversa. Se por um lado o tirano conseguira forjar e disseminar a imagem do “país dos brandos costumes”, da neutralidade (ainda que hipócrita) e com vocação para uma espécie de proselitismo da indiferença – chavões ardilosos e impostores que o mesmo celibatário de Santa Comba exibia, qual “ex-líbris” de um idílio inexistente (como se este cantinho da Europa não fosse um país igual a todos os outros nas suas fracturas e desconsertos socio-políticos, nas suas contradições e extremismos – vejam-se, se não quisermos retroceder às fogueiras do Santo Ofício, as assuadas e tumultos da guerra civil entre miguelistas e liberais, as perseguições novecentistas por suposto delito de “jacobinismo” e os ataques bombistas dos séculos XIX e XX; os assassinatos de altos dirigentes políticos como D. Carlos (1908), Sidónio (1918), António Granjo, Machado dos Santos e José Carlos da Maia (na chamada “Noite Sangrenta” de 1921), as arbitrariedades que o próprio regime salazarista perpetraria (recordo os assassinatos de Catarina Eufémia – 1954 – e Humberto Delgado, 1965) – por outro, uma dura e antagónica realidade era posta internacionalmente a nu por um punhado de descontentes que se recusava engrossar as fileiras da mediania satisfeita e acomodada – da “aurea mediocritas”, no fundo.
Havia profundos, embora inexpressivos, focos de resistência desde os primórdios da “Salazarquia” (para usar uma expressão de H. Raposo) e que se revelariam suficientemente tenazes para imporem paulatinamente um rumo transgressor e de insubmissão. “Resistir” – era, mais do que uma palavra de ordem, todo um país paralelo que se reerguia das cinzas, ameaçando a “vita áulica” do Portugal decrépito e adormecido à beira de um caminho que, ou conduzia à Cova da Iria, ou a parte nenhuma. Assim, equivalerá sempre a negra ingratidão para com aqueles que projectaram uma sociedade livre e emancipada, qualquer atitude atentatória das suas conquistas mais fundamentais, como o direito à diferença, à indignação, à divergência, a aspirar a uma sociedade mais justa e solidária. Por isso, os lugares de repressão de ontem – os Aljubes e os Tarrafais, Caxias e os Fortes de Peniche (mas também os pequenos referenciais locativos que compõem a pequena iconografia da resistência) – são hoje santuários de Liberdade e inconformismo; a lição viva de quem no passado recusou viver a vida folgada da indiferença – ou da cumplicidade tácita – para fazer valer os valores da universalidade do homem. Que profundo respeito nos infundem todos quantos renunciaram ao conforto garantido por toda a passividade cúmplice para se aventurarem na incerteza, na periculosidade, na insegurança… Na verdade, só os espíritos verdadeiramente livres e esclarecidos são incapazes de fechar os olhos ante a iniquidade, a usurpação dos direitos ou a extrapolação de poderes.
Mas entretanto, a doença voltou e reinstalou-se- E só por manifesta cegueira se pode afirmar que, hoje em dia, as suas consequências pertencem a um passado mais ou menos longínquo… Pululam um pouco por todo o país tiranetes que aproveitam esta debilidade e renovam a cada momento a aquiescência da submissão, a aceitação da obediência como fórmula mágica de uma paz que tem a vitalidade das necrópoles, para desferirem em segundo plano os golpes mais desumanos.
*O presente texto constitui uma súmula de um outro mais extenso, a ser publicado em livro brevemente.