1. O episódio do Bairro da Jamaica, no Seixal, parece ter destapado um barril de pólvora. Mas a agitação, embora com aspectos violentos, é induzida. Não passa de uma espécie de bullying político. E tem um protagonista: Mamadou Ba, líder do SOS Racismo e assessor parlamentar do BE. Criticá-lo já se tornou redundante. Importante é decifrar o seu discurso. Começando com uma comparação com o seu presumível alter ego: Malcolm X. O malogrado activista do nacionalismo negro, que na década de 60 incendiou as comunidades afro americanas urbanas nos EUA. O seu projecto separatista era a resposta à segregação de facto no Norte e de direito no Sul (o infame sistema Jim Crow), num ambiente escaldante, que as marchas pacíficas pelos direitos civis de Martin Luther King não conseguiam apaziguar. Ou seja, num país onde o racialismo era questão nacional e ia muito para lá da cor da pele, não estranhava uma resposta violenta da comunidade mais afectada. Mamadou, ao que parece, tem uma licenciatura e já desempenhou funções em várias agências não governamentais. Conhece muito bem o universo para quem fala e as suas referências históricas. O seu problema é ser dispensável no contexto onde adquiriu notoriedade. Está lá a mais. Não houve nenhuma Rosa Parks a sentar-se do lado “errado” do autocarro. Tudo não passou de uma questão de polícia. Em que os próprios envolvidos o que menos querem é publicidade. E se os activistas negros nos anos 60 e 70 assumiam a violência como forma de luta, o SOS Racismo limita-se a alimentá-la, embora sem nunca a repudiar. Ou seja, Mamadou criou um problema onde ele não existia. E passou ao lado daqueles que existem. O racismo é uma questão complexa. Reduzi-la a uma arma de arremesso político, só ajuda a que se perpetue na obscuridade, tribalizando a sociedade.
2. (à memória de minha mãe) Lá estava ela. A caixa de música. Por baixo de uma cómoda, dentro de uma embalagem de papelão que espreitava, no meio do pó e velharias sem significado. Ao princípio, parecia um simples guarda joias japonês de madeira lacada, puído pelo tempo. Só quando abri a caixinha percebi tudo. Reflectindo os sinais do tempo, dei com o espelho, na face interior da tampa. E nele um ideograma desenhado, representando o monte Fuji. E também os dois pequenos compartimentos, lá dentro. Um deles fechado, mas com uma tampinha, contendo o mecanismo, ferrugento e já solto. Por cima, havia antes uma bailarina em miniatura que rodava quando aquele era accionado. E que agora lá não estava. A outra divisória, aberta, ainda forrada com veludo vermelho. O espaço ideal para guardar grandes segredos e pequenos valores. Tomado por um sobressalto, cuja origem ainda não era clara nessa altura, peguei novamente na caixa, com cuidado. A trepidação produzida causou um som metálico, quase imperceptível. Como um débil suspiro de quem esteve encerrado anos e anos num recanto esquecido da memória e do tempo. Condenado a uma inutilidade cuja rejeição foi tragicamente silenciada. E que, por isso mesmo, se manifesta ao menor pretexto. A emoção crescia. Peguei no pequeno manípulo usado para “dar corda”, na parte inferior da caixa. Rodei duas vezes. Surpreendido, dei conta que a fina peça metálica, incrustada no parafuso cujo movimento faz girar a engrenagem, rodava timidamente, a espaços. Mas não o suficiente, claro, para um funcionamento “normal” do mecanismo. Faltava ainda o toque de Midas. Nesse momento, nem hesitei: umas gotas de óleo em spray fizeram o milagre. E eis que as patilhas de metal percutidas pela bobine dentada começaram a mover-se. A melodia começou. Ou seja, meia dúzia de sons encadeados, que tantas vezes tinham preenchido a minha fantasia de criança. Nos segundos iniciais triunfou a excitação de ter participado num milagre. Mas algo mais estava para vir. Senti-me empurrado bem para o centro dessa infância, para as emoções completas, os gestos completos, para uma alegria brutal, indesmentível, gratuita. Para a voragem do que “ainda já não é”. Incólume, à beira do segredo triunfante. De frente para a face indestrutível do poema.
3. No que me diz respeito, é fundamental organizar o pensamento como uma perseguição da realidade. Que inclui o que já lá (ou ainda) não está e o que ela pode arrastar consigo. Perceber que as coisas em si mesmas não são nada, mas tão só em relação com outra coisa. E isso é uma criação do espírito. Pensar é organizar o instante. São “Os trabalhos e os dias”, de Hesíodo. Portanto, fora de causa cair nas armadilhas da propaganda, no jargão da baixa política, no colinho da desresponsabilização, na fatuidade bem-pensante, na arrumação apressada das dúvidas, no circunlóquio da vacuidade. Podia ser de outra maneira? Podia, mas não era tão sexy!
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia