Claro que não deve haver nada original porque sempre que surge um pensamento estranho, se o pesquisarmos na Internet vamos descobrir literatura e histórico do tema. O porta-luvas já serviu de canção, de esconderijo, de memória, de lugar de desencantos por se deixar o indevido, de conflito por cartas de amor desonrado, de proteção por se lá encontrar uma arma, de sorrisos por fotos passadas, de reencontros aos sons dos discos lá esquecidos.
O que nunca se encontra ali são luvas, pelo que deviam renomear o espaço como sugeriam os Death Cab for Cutie https://www.youtube.com/watch?v=KGEyqP0744c
«The glove compartment is inaccurately named
And everybody knows it
So I’m proposing a swift orderly change
‘Cause behind its door, there’s nothing to keep my fingers warm»
O porta-luvas podia ser um lugar para atirar impropérios que apetecem gritar pela janela. Seria como um bolso de carregar insultos para libertar nas reuniões. Tirávamos da algibeira com a mão e fazíamos adeus deixando aquele calão que não podemos mesmo dizer. Era de atirar a juízes, doutores, jornalistas, condutores de domingo. O porta-luvas abria-se quando levávamos de boleia gente que não queríamos. Lá saía o cheiro e as pedras e alfinetes que tínhamos deixado para o dia. Mas também podia carregar amor, ser um compartimento para ouvir o desabafo na solidão da viagem, falando-lhe alto, dissecando para dentro as emoções, os pensamentos, as loucuras, os desejos. Ela sentada ao lado e a timidez do desejo romper-se no gesto de abrir o porta luvas. Bum! De dentro o disco certo, as fotos escolhidas com precisão, as palavras que nunca foram ditas e o desejo tomando forma.
– Ordinário! – disse ela. Gelei! Estava tudo tão estudado como no filme “As good as it gets”, quando Jack Nicholson prepara o carro de viagem para Helen Hunt.
Eu tinha o compartimento errado aberto. A braguilha inadvertidamente escancarada convertia romance em transparência excessiva.