1. Ao ver os carros incendiados nas ruas de Paris, com a opinião pública, convertida pelos “factos”, a dar apoio aos agitadores sem qualquer respeito pela polícia e pela ordem pública, interrogo-me sobre o futuro da democracia. Que democracia é possível quando os governos legitimamente eleitos têm de aplicar medidas difíceis e as corporações não as aceitam e fazem “terrorismo”, com piquetes, grupos armados, pessoas mascaradas e violência? Que explicações e mediação são possíveis? O contágio chega aos media onde as longas horas de espetáculo de “fogo nas ruas” ajudam a criar o lastro da banalização. Tudo é normal, de tal modo que acabo de ver num canal francês em contraposição às imagens de destruição de Paris o título “bloqueio pacífico de duas autoestradas pelos coletes amarelos” (sic), como se um bloqueio sem violência fosse já completamente aceitável. E veem-se jovens a conspurcar um monumento como o Arco do Triunfo! Não há limites?
2. Com a promessa de regresso de José Eduardo Moniz à televisão, esperava-se o previsível num canal como a TVI, apenas um andar acima da CMTV: informação nervosa, crítica, popularucha, com julgamentos rápidos e sem tempo para fundamentar. Mas no início de “Deus e o Diabo”, rubrica do telejornal da sexta, ninguém esperava que fosse tão mau como realmente foi: um programa “sobre os joelhos”, com o desafio falhado do “direto” dos espetadores diante de um portátil ou smartphone com câmara. Mesmo o que já estava preparado chegava sem a mínima clareza ao espetador. Um convidado, Mário Nogueira, confrontado com perguntas de simples provocação, nem sequer teve tempo para acabar meio raciocínio e já estava fora para a rodada seguinte. Um caso de solidariedade social foi apresentado em direto (com som impercetível), tendo o apresentador (calculadamente) cortado a resposta que um elemento do Governo dera anteriormente sobre o assunto. O apresentador, José Eduardo Moniz, não se coibiu de responder também na qualidade de elemento da direção do Benfica. Flop total. Deu mesmo pena. É verdade, o que estava ali a fazer o jornalista David Dinis?
3. António Costa, põe colete anti balas. Qualquer noticiário que se preze está atento a ti e às tuas emoções e a disparar se fores seco ou neutro. Parece que não tens emoções ou que ninguém te quer entender na linguagem que utilizas. Em qualquer coisa que digas estão a escrutinar se foste tão emotivo ou comovente como Marcelo. Desde os incêndios que, se defendes a tua dama, a coisa pública, te culpam de estares a não ser suficientemente solidário com os portugueses. Tens de aprender a chorar, a dar razão, a comover-te com a desgraça de cada pequeno caso, a dizer que o Estado pagará sempre. É isso mesmo, aguenta que em cada conferência de imprensa ou declaração pública haverá uma pergunta de jornalista ou do público a contar-te um casozinho de alguém que ninguém apoia ou que quer ter uma resposta que passe à noite na TV. Isso é que dá “frisson” à vida política. Ouve quem se queixa, dá beijos e abraços, demora-te mais do que seria normal nos sítios da desgraça, diz que o Estado paga, que eles calam-se. Já sabes, depois de Marcelo nada é igual.
4.Os livros de memórias ou que são construídos como uma recordação de tempos realmente vividos são dos que mais se ajeitam ao espírito de Natal. Porque têm autenticidade, porque as personagens “existiram”, porque nelas nos descobrimos a nós. Há alguns que, para além disso, nos deixam a impressão de que, no final, aprendemos a escrever melhor, isto é, são exemplos de como se deve escrever. Embora seja mais um romance do que um livro de memórias, “A Árvore das Palavras”, de Teolinda Gersão, adota esse jeito de contar de olhar para trás e descobrir a ternura do passado, os dramas ultrapassados e a amargura necessária da vida numa época de transição em Moçambique. Uma história que atravessa os tempos em que pôr um anúncio no jornal alterava o destino das pessoas e as afastava do isolamento. Que mostra que uns conduzem a vida e outros são conduzidos por ela. Às vezes sem culpa, desistindo pura e simplesmente, como diz o livro, «porque uma injustiça anda atrás de nós” e uma roda “de repente nos esmaga» se não fugirmos a tempo. Por um acaso cruzei-me também no último mês com outro livro da época colonial de Moçambique, este mais duro e de intervenção, mas igualmente bem contado: “Nós matámos o cão tinhoso”. Os negros eram nessa altura figuras quase tão desprezadas como os cães tinhosos que não se hesitava em matar mesmo que os seus olhos pedissem carinho e clemência. Um conjunto de contos que nos enche o coração. São boas sugestões para este Natal, que (sem ironia) desejo seja de encontro e entendimento. Boas Festas.
(Teolinda Gersão, “A Árvore das Palavras”; Luís Bernardo Honwana, “Nós matámos o cão tinhoso”)