O final de outubro marcou-me por uma condenação a 16 meses de prisão efetiva de um ex-enfermeiro do Ultramar por ter efetuado uma cesariana sem anestesia à sua cadela e da qual resultou a morte da mesma e dos nados-vivos, os quais sufocaram ao serem colocados num saco de plástico no caixote do lixo. Foi uma decisão histórica desde que a lei que penaliza os maus tratos contra animais de companhia entrou em vigor em 2014. O juiz considerou que o réu não atuou para ajudar a cadela, nem que terá havido um qualquer motivo legítimo ou estado de necessidade que tivesse justificado aquela intervenção grosseira. O juiz terá referido ainda que se a cadeia não servia para penalizar a crueldade, serviria para quê? Daí ter afastado a possibilidade de substituição do cárcere pela pulseira eletrónica ou serviço comunitário. Perguntam-me se concordo? Parcialmente. Vamos tentar enquadrar e calibrar esta decisão segundo outras perspetivas e concluir ou não da sua justeza e equidade.
Porque não se condenam também donos de cães que os mantêm em casotas de metal, com correntes de metro à esturra do sol ou ao gelo ou que vivem em varandas ou outros locais exíguos em condições semelhantes? Um bandarilheiro que, a sangue frio, espeta uma série de ferros no dorso de um desgraçado touro para deleite de uma cada vez menor e sanguinária “afición” não estará a provocar uma dor semelhante ou maior num animal? Porque não vai preso? Porque não vão presos os barranquenhos que matam na arena os seus touros? Porque não vão presos os empresários circenses que condenam belos exemplares de animais selvagens a uma vida de sofrimento e os confinam a celas pouco maiores que eles? Porque não vão presos os produtores de leite que retiram das vacas os bezerros acabados de nascer, provocando um imenso sofrimento às mães e submetendo-as depois a anos de escravidão, destinando-as a comer e beber e ordenhar em celas com o seu tamanho e longe da natureza e depois de acabarem de joelhos por exaustão são mortas para carne? Porque não se encarceram produtores pecuários que produzem porcos que nunca verão a luz do dia ou os que produzem galináceos na mesma situação?
Se é para proteger, e bem, os direitos dos animais, toca a prender esta gente toda então. Mas não é isso que acontece porque esta lei é cirúrgica para animais de companhia, porque mesmo a esquerda protetora dos animais quer continuar a comer umas boas costeletas, coxas ou entremeadas e não está para abdicar disso. E se eu tivesse um porco de estimação, já poderia abrir-lhe o bucho a sangue frio só por ser porco, ou não poderia por ser de estimação? Qual é a diferença entre o sofrimento de uma cadela à qual executaram uma cesariana a sangue frio e o de um porco que executamos num banco de madeira esperneando enquanto se esvai em sangue no dia da matança? Haverá diferença? É que se o que nos preocupa mesmo é o bem-estar animal, toca a mandar prender os produtores pecuários, mas também os transportadores de animais que os levam milhares de quilómetros, por essa Europa fora, em condições abjetas. Mas não há coragem para isso porque o que interessa aos carnívoros é continuarem a saborear os produtos animais ignorando os maus tratos que esses sofreram até à sua morte “misericordiosa”. Não passamos de uns faz-de-conta, uns consumidores covardes, uns cínicos e uns hipócritas. Por isso ficamos muito contentes e aplaudimos ações “corajosas” como a deste juiz enquanto comemos leite com “corn flakes” ao pequeno almoço, degustamos um bife de vitela ao almoço ou comemos uns secretos de porco preto ao jantar e vemos as notícias.
Passando a coisa agora para humanos vs humanos: Porque é que se condena alguém por um crime contra um animal a prisão efetiva, provavelmente réu primário, e se deixam à solta familiares que maltratam os seus idosos ou os abandonam em hospitais ou lares? Porque se prende o polícia que bate no criminoso e o criminoso que bate no polícia sai em liberdade? Porque é que banqueiros corruptos e ladrões, que devido às suas gestões danosas levaram à ruína e ao suicídio muitos seres humanos, não foram ainda presos? E já agora muitos dos políticos que nos desgovernaram e que andam por aí a rir-se da nossa justiça, porque não foram ainda condenados? Há neste país desde há muito tempo uma tendência, também da magistratura, em ser-se forte com os fracos e fraco com os fortes, uma perda total de perspetiva e de análise do real peso das ações humanas e das suas consequências sobre os outros fazendo parecer ao comum dos mortais que o mundo está mesmo ao contrário.