Volto sempre à leitura do meu devotado Fidelino de Figueiredo sempre que quero reequilibrar as coordenadas universalistas em que tenho estribado uma existência desassossegada («…que a paz não é palavra para mim» – Ruy Belo dixit) – pois é essa a maneira que encontrei de reagir, após o fragor da batalha, às peias de uma práxis de iliberalidade que por aí se vai dissimulando – na rejeição sincera e desassombrada de todo o facciosismo, preconceito e mesquinhez. E se há algo que verdadeiramente colide com uma visão decididamente imperturbável do mundo – à maneira do bom Fradique Mendes (o ‘Tio Fradique’ como diria Fidelino) – são as glosas momentâneas e sectárias dos que do cais arremessam pedrinhas ao navio que se fez, inabalável, ao «mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim» – como diria a Sophia.
«O trabalho da cultura é trabalho de cooperação leal» – escrevia em «Um Coleccionador de Angústias» o velho mestre que hoje infelizmente ninguém já lê em Portugal – valha ao menos a lição imorredoura do sempre louvável carinho que o Brasil vai cultivando pelos nossos intelectuais mais distintos (Fidelino fora membro da Academia Brasileira de Letras e, por algum tempo, professor na USP).
Desde cedo, com o mesmo Fidelino fui aprendendo a distanciar-me de tudo o que contribuía para alienar a construção parcimoniosa de um dialeto desafeiçoado ao pormenor para se ater à meta cultural do ‘pormaior’: a ‘negatividade do sectarismo’ na cultura portuguesa, oportunamente diagnosticada pelo autor que vimos citando, grassou durante demasiado tempo na sociedade portuguesa e deixou sequelas que sobrevivem até aos nossos dias – veja-se o caso flagrante das virulências disseminadas pelo mestre da maledicência que foi Teófilo Braga (que ‘Santo’ Antero (Eça, apud) chamou de “ Marat soalheiro”, “pequenino miserável”, “nulo”, “mau tolo”, “vilãozinho” que padecia da “hidrofobia dos infinitamente pequenos” – cf. o nosso ensaio «Das Conferências do Casino aos Vencidos da Vida», RABB, 1998)… Fidelino de Figueiredo, discípulo de polígrafos como Unamuno e Menéndez Pelayo, era o primeiro a condenar aqueles que ‘semeavam (…) um pessimismo negativista que nos levava ao desalento abúlico’…
Passou há muito o tempo dos hipercríticos e das redomas sacrossantas da exclusividade criativa. Na verdade, é tempo de fruímos com propriedade as conquistas democráticas que ensejam conquistas coletivas de cidadania plena: todos têm um lugar na construção do paradigma cultural da urbe… De uma forma ou de outra, só os autoexcluídos (ou os detentores de ludibriosas visibilidades nas redes ditas ‘sociais’) encontrarão motivos para a marginalização.
Assim, o dialeto de construção de um agregado cultural para a cidade não pode assentar em pressupostos nem saudosistas nem situacionistas: numa lógica consertada de lealdade, como a pressupôs Fidelino, terá de agenciar as manifestações em eclosão com as expressões cristalizadas, num diálogo sadio e franco (evidentemente nem sempre pacífico) que permita estabelecer confrontações e, logo após, sínteses de estruturação pluridisciplinar com vista à almejada conquista da primazia (porventura) europeia.
A imagem mítica – e patética, diga-se – do ‘herói’ ou dos ‘heróis’, terá necessariamente de ser secundarizada para dar em definitivo lugar àquilo que realmente importa protagonizar: o interesse coletivo, a cidade e o seu futuro; pensada sob a égide do interesse comum, no concreto dos cidadãos livres e comprometidos com o devir comunitário – no fundo o conceito que os gregos clássicos criaram e chamaram ‘polis’ – que não é apenas a cidade em si, mas que constitui acima de tudo um ecossistema humano, um complexo sociopolítico que obvia o equilíbrio das relações urbanas, no conjunto dos seus conhecimentos, ideias, crenças, saberes, aspirações, labor, estudo e criação. É essa a expressão da cultura em permanente construção, que projetará a cidade e nos tornará emancipados.
Por: João Mendes Rosa