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Ventoso

1. Na cidade onde vivo, acontecem coisas estranhas. Por exemplo, os festejos de Carnaval, organizados pela autarquia local. Que consegue juntar boas e péssimas ideias. Positivo, as tabernas do entrudo. Horrível, o desfile e julgamento/morte do galo do entrudo. Os responsáveis, políticos e técnicos, conseguiram transformar uma tradição popular, enriquecida com uma teatralização cuidada e contributos artísticos de qualidade, num corso popularucho, inofensivo, amputado da crítica mordaz. Talvez porque o presidente da câmara se ache acima dela. Este ano, tivemos, um galo construído com um tipo de plástico e tintas cuja combustão libertou fumo e toxicidade em níveis inaceitáveis. E, last but not least, escassa afluência de público visitante. Ao contrário das sessões do julgamento e morte do galo anteriores, onde testemunhei, enquanto participante, níveis de assistência ímpares. Locais e forasteiros. Os últimos precisamente porque sabiam que vinham ver um espectáculo único no contexto nacional. Ao contrário do modelo placebo actual. Que sendo praticamente igual ao que se faz por esse país fora, não atrai nem entusiasma. Mesmo assim, a propaganda da autarquia pôs a circular a notícia de que os hotéis locais estavam cheios de visitantes que vieram para o entrudo. Sucede que, durante este período, decorreu no IPG um congresso ibérico na área da gestão, que trouxe à cidade cerca de 400 participantes. A famosa ocupação resulta, pois, deste evento, nada tendo a ver com a quadra carnavalesca. Foi essa a informação que me foi transmitida por vários operadores hoteleiros. A qual podia ser facilmente confirmada pelos órgãos de comunicação social locais. Estranhamente, ou talvez não, ninguém pegou no telefone. Comer e calar dá certamente menos trabalho. A cidade onde vivo tem tudo para ser um local de excelência. Mas há um longo caminho a percorrer para lá chegar.

2. Ao rever a “Laranja Mecânica” percebi uma coisa fundamental. O filme era tão incómodo na altura como hoje. Ou seja, como que antecipou as razões da sua actualidade. E se então chocou, foi mais pelo aparente culto da amoralidade, pois as guerras de libertação nos costumes e na moral já tinham sido ganhas pelo novo tempo. Percebi agora que a questão central do filme não é a violência por si só, mas o seu controlo pelo poder. E os sentimentos postiços ao seu serviço. E a busca da vitimização pelos novos activistas donos da virtude. E tanto assim é que o neopuritanismo histérico da correcção política a que hoje assistimos recoloca este filme, enquanto alegoria cruel das ameaças à liberdade, num estatuto, digamos, profético.

3. Rio fez duas escolhas polémicas para a nova direcção do PSD. Apostas arriscadas, ou riscos calculados? O tempo o dirá. Em relação a Malheiro, pouco há a dizer. É um vulgar cacique português e usa pasta medicinal Couto. Se enveredar pela carreira de facilitador, vai-se tornar o segundo Relvas. Com ou sem licenciatura. O caso de Elina Fraga é bem diferente. Militante do PSD há largos anos, chegou a ponderar a candidatura à Câmara de Mirandela, antes de suceder a Marinho e Pinto como Bastonária da OA. Por razões óbvias, tendo acompanhado o seu breve consulado, devo dizer que a sua prestação foi sofrível. Deixou arrastar os dossiers polémicos, como a massificação da profissão, a desjudicialização, a actualização das tabelas do apoio jurídico, certas incompatibilidades entre o exercício da profissão e cargos políticos e, sobretudo, a reforma da CPAS. Por outro lado, os resultados das auditorias às suas “adjudicações” falam por si. E as irregularidades que terá cometido estão a ser investigadas. No entanto, comprou a guerra da reforma judicial, contra a ministra Paula Teixeira da Cruz. Um conflito cujas feridas não sararam, como se viu no congresso. Uma causa cuja única utilidade foi desviar as atenções da bomba que ela e o seu mentor Marinho e Pinto sabiam que iria rebentar, mais dia menos dia: a CPAS. A sua sorte foi a sua inabilidade ter sido ofuscada pela da ex-ministra, e o seu sucessor estar de costas voltadas para a classe. Ou, pelo, menos, a que extravasa a advocacia de negócios. Quanto à carreira política, nada de novo. Já houve muitas construídas assim e há-de continuar a haver. Mas não surpreende alguém com tão fracas credenciais ter sido chamado por Rio. Neste caso, também a mensagem é tudo: afrontar a anterior cúpula dirigente do PSD.

4. Também pode acontecer que fiquemos embrenhados na nossa mentira e a tomemos como um panegírico da vaidade. Nesse caso, o abandono de que nos reclamamos vítima é pouco mais do que um falso alarme. Porém, esse caminho onde desaparecemos e rodopiamos numa luta decisiva pode tornar-se o nosso. E sem que, por isso, passe a ser mais verdadeiro. Mas é só aí que deixaremos de queimar incenso aos nossos medos. Só aí daremos de caras com a extrema generosidade ou crueldade que a vida oferece, conseguindo dar o passo fundamental: sair da monotonia para a variedade, da simplicidade para a complexidade. Só assim abandonaremos o fraco consolo dos pequenos triunfos, ou das mágoas de estimação, e alcançaremos os mares revoltos que tudo dissipam e tudo revelam. Tal como um poeta que, ao abandonar o vício da forma e do requinte, se aproxima dos mais subtis matizes da sensibilidade, se acerca da linguagem viva.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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