Numa belíssima e notável intervenção do chefe da igreja católica em Portugal, que a hierarquia designa por cardeal, ficámos a saber do atempado conselho aos seguidores dessa religião, entretanto divorciados de um primeiro casamento, que se devem abster de terem relações sexuais.
Para além do caricato da afirmação acrescentemos-lhe o hilariante e também o ridículo.
Dando uma vista de olhos pela lei fundamental podemos ler no artigo 41º: «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado», o que dá para entender que todo o processo civil tem a sua tramitação, podendo o Estado fazer, ou não, acordos com as hierarquias das várias igrejas. O Estado é laico, e assim deve ser, o que faz com que as igrejas não sejam incluídas no protocolo do Estado, pese embora tenham na sociedade a sua base de apoio. É talvez por isso que percebemos o fundamentalismo de púlpito onde são desbobinados arrogantemente argumentos contendo processos velados de manipulação de sentimentos, tentando, por todos os meios, agarrar os espíritos livres e até outros que procuram insistentemente a liberdade, a fim de conquistar espaços, que não são seus, opinando em processos da sociedade civil, esquecendo-se, ou talvez não lhe interessando, falar das asneiras e erros históricos que ao longo dos tempos foram cometendo. Lembrar o tribunal da santa inquisição, os autos de fé, a conspiração contra o Estado em 1759, os padres pedófilos e a eterna lamúria do pedido de desculpas.
Afonso Costa, a 20 de abril de 1911, terminou com a promiscuidade de interesses aprovando a célebre Lei de separação da igreja do Estado. Anos mais tarde, em 1940, Salazar resolve fazer um acordo com o Estado do Vaticano (reconhecido por Benito Mussolini pelo Tratado de Latrão em 1929) a que chamou Concordata, o que fez com que o bispo católico, Ferreira Gomes, afirmasse que a dita concordata era clerical e o regime uma ditadura católica.
O papel da Igreja Católica é relevante nalgumas áreas e tem de ser reconhecido, mas isso não a isenta da aplicação do princípio de igualdade, sendo que na revisão da cerejo-salazarenta concordata feita por Durão Barroso, em 2004, se dê pela existência de artigos inconstitucionais, podendo acontecer grosseiras interferências em assuntos de Estado e da sociedade civil. Basta, para tanto, referir o artigo 15º sobre a indissolubilidade do matrimónio, onde é recordado aos cônjuges «o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio». A Igreja Católica é livre de alertar os seus seguidores para o que bem entenda (nem que caia no ridículo, como esta da abstinência sexual), mas o Estado, representado por Barroso, não tinha de o subscrever, por disposição constitucional, pois aí apela-se aos cidadãos que não exerçam direitos que a Lei lhes confere no exercício individual de cada um. E depois temos as isenções fiscais, o IMI, em edifícios onde se ensina a religião, a exclusividade da prática do culto em monumentos nacionais, o maior possuidor de património, etc. etc. etc.
Uma República laica como a nossa jamais será esvaziada de valores, assentando em princípios de igualdade e liberdade, não podendo condicionar nada nem ninguém, assumindo o Estado a neutralidade, onde o anticlericalismo, segundo o republicano Alberto Xavier «não é a perseguição a qualquer confissão religiosa, pretendendo-se proclamar o poder civil pelo espírito de todas as religiões e garantir a liberdade de desenvolvimento de todos os cultos».
Sendo a população portuguesa maioritariamente católica, foi de enorme importância a legalização da interrupção voluntária da gravidez, o casamento civil “gay” e lésbico, a implementação da educação sexual nas escolas, a procriação medicamente assistida, o reconhecimento das uniões de facto, a contraceção, e, aí está, dia menos dia, a discussão sobre a eutanásia.
Depois daquilo que vamos vendo, ouvindo e lendo, por parte de alguns representantes da Igreja Católica e, deixando de lado o princípio de Russel “porque não sou cristão”, a sociedade deve e tem de agarrar com a toda a convicção e firmeza ética os direitos constitucionais e legais do nosso regime democrático, deixando de ouvir os bolorentos e teimosos velhos do Restelo, entendendo e praticando, em toda a sua plenitude, a Cidadania nesta centenária República laica.
Por: Albino Bárbara