Existem os livros que lês velozmente – como se quisesses repetir a tua própria história, aninhada numa renovada memória – e depois existem os livros em que te demoras, em que vives a necessidade constante de voltar atrás, devorar até ao êxtase cada farrapo do mistério humano, mentir a ti própria, fazeres batota, e dizeres que não, não estás a ler aquela página pela décima vez. Foi assim com “O Retrato de Dorian Gray” e acredito que é assim quando a boa literatura nos acontece.
Quantas vezes não damos por nós, prisioneiros do nosso próprio pensamento, a querer segurar-nos mais um instante naquela onda que teima em desaparecer? Quantas vezes não corremos nervosos para as experiências de outrora e mantemo-nos quentes pela lareira que um dia em nós deixáramos acender? Sinto que poderia divagar por muito tempo sobre o impacto que Dorian Gray exerce em alguém que se mantém vivo e sensível à arte. A personagem lembra-me a criança que habita em cada um de nós, que nunca cresceu, nem nunca irá crescer – aquela que oculta as suas maiores traquinices, a que tapa a fealdade das suas velhas ruínas e esconde-se para poder preservar o reflexo que o espelho decide devolver.
Alguns de nós decidem aniquilar qualquer vestígio dessa infância com vergonha e pudor, outros mantêm-na em segredo pelo receio de mácula ou dano irreparável, outros há que lhe são completamente indiferentes e vivem alheados de tudo, mas depois, num acaso, esbarramos nos que se maravilham com a sua própria existência. Dorian apressou-se instintivamente para esta última e a sua personalidade crescera numa precipitada paixão.
Pintando-se como as crianças se pintam, sem pincéis à medida e com todos os pigmentos e contornos desordenados, Mr. Gray distancia-se cada vez mais do seu mundo interior, dando pressa a outras excentricidades que Lord Henry tão bem lhe estimula. Pelo caminho, assiste-se à perda de uma amizade e um amor não realizado.
As duas personagens deixam-se passear por uma Inglaterra requintadamente bela, vivem o seu país para melhor o criticarem, reconhecem na fealdade uma das sete virtudes mortais, e mesmo nas mais loucas alegrias não esquecem os arrepios de terror. Porém, prosseguem, e continuam a fitar a beleza, sem a ferir. Mas será possível a juventude eterna, sem a morte dentro da própria vida?
Polémico, o romance de Oscar Wilde perturba-nos como só uma beleza sobrenatural nos poderia perturbar, e nesse quadro percebemos que nem sempre somos nós (leitores) que nos prendemos aos livros, há acasos (como este) em que são os livros que se prendem a nós.
Melanie Alves