Conheci o Marino Ferreira em 1976, quando chegou à Guarda vindo de Moçambique. A sua apresentação à cidade consistiu numa simultânea de xadrez na antiga sede dos Bombeiros Voluntários Egitanienses, ainda na Rua Alves Roçadas. Seríamos uns vinte e, tanto quanto recordo, perdemos todos. Os meus conhecimentos do xadrez eram rudimentares, abaixo ainda dos restantes participantes, mas mesmo assim chocou-me, lembro-o bem, a simplicidade como foram desfeitas as minhas ilusões de um brilharete.
O Marino não era um qualquer. Tinha sido campeão de Moçambique anos a fio e tinha integrado, com o João Cordovil e o Joaquim Durão, uma seleção nacional que, em finais dos anos 60 ou início dos 70, tinha participado numa série de eventos no Brasil. A sua chegada à Guarda, contudo, iria bem para além da simples competição. Alguns meses depois da simultânea apareceu um anúncio no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque sobre aulas de xadrez na delegação da Direcção-Geral de Desportos. Pouco a pouco, foram aparecendo futuros jogadores de xadrez: eu e os irmãos António e João Quelhas, os irmãos Fernando e Paulo Bento, o Fausto Coutinho, o Mário Tenreiro, o Fernando Badana, o António Rodrigues, o Carlos Nabais, os irmãos Quinaz, a minha irmã Aida, o Carlos Amaral, o Prof. Camilo e muitos outros. O Marino rapidamente nos conquistou com o seu sentido de humor e os seus modos afáveis.
O Marino ensinava-nos com método, de uma forma que nos seria depois útil, pelo menos foi-me útil a mim, noutros ramos de conhecimento: expunha primeiro as regras mais básicas, com exemplos da sua aplicação, ia introduzindo elementos com cada vez mais complexidade, treinando o reconhecimento de padrões, ensinava-nos a fazer a análise das opções e a eliminação de hipóteses, favorecia a compreensão sobre a memorização e a reflexão sobre o impulso, ensinava-nos a diferença entre tática e estratégia. A teoria e a técnica eram importantes, mas a competição, onde a aprendizagem era testada, também. Por isso, poucos meses depois das primeiras sessões de treino, um pequeno grupo foi jogar o campeonato nacional de partidas rápidas, em Abrantes. Os resultados foram os esperados e acabámos, ou acabei pelo menos eu, entre os últimos lugares. Era junho de 1976.
Dizia-nos Marino Ferreira que se aprendia mais com as derrotas do que com as vitórias e por isso tínhamos de descobrir a razão de cada insucesso, de modo a que não voltássemos a perder da mesma maneira. O objetivo era melhorar sempre, passar de aprendiz a jogador experiente, um dia a mestre. Sempre que defrontávamos um jogador mais forte tínhamos uma oportunidade para nos superarmos, e sempre a obrigação de jogar olhos nos olhos e de procurar derrotá-lo. Para isso, Marino Ferreira foi trazendo à Guarda grandes jogadores estrangeiros, como Suetin (que, pela primeira vez, nos falou de Kasparov), Padevsky (que tinha derrotado Karpov e empatado por duas vezes com Fisher) ou Robatsh.
O Marino, entretanto, dava-me acesso à sua biblioteca de xadrez. Quando se começavam a acumular os livros em minha casa, lá vinha um irónico “o Ferreira não quer também que lhe empreste uma estante?”
Faltavam em Portugal, por esses anos, competições de alto nível, onde os jogadores nacionais pudessem defrontar jogadores estrangeiros de primeira linha. As poucas oportunidades para isso estavam reservadas a mais dúzia de jogadores e apenas nas provas oficiais da FIDE (Federação Internacional de Xadrez), como os apuramentos para o campeonato do Mundo ou as Olimpíadas de Xadrez. Foi por isso uma pedrada no charco a organização, em 1977, do primeiro Campeonato Aberto da Guarda com a participação do Grande Mestre Karl Robatsh e prémios em dinheiro (apesar dos preconceitos existentes na altura sobre o assunto e da direção da Federação Portuguesa de Xadrez ser então adepta de que a modalidade se devia manter amadora). A verdade é que o campeonato aberto da Guarda foi um sucesso e tornou-se rapidamente, até começar a ser imitado, na prova mais aguardada do calendário competitivo nacional.
Os resultados começaram a aparecer. Em 1977, o Marino pedia ao Cordovil, que acabara de me derrotar sem piedade numa jornada do Campeonato Aberto da Guarda, que visse a partida comigo e me ensinasse alguma coisa. Começou o Cordovil, com a franqueza e frontalidade que lhe eram típicas: “você joga mal…”. Dois anos depois voltei a defrontá-lo, agora em Lisboa, e derrotei-o. Em 1978, a equipa da Guarda fica em terceiro no Campeonato Nacional de Equipas, em Ílhavo, apenas atrás do Belenenses e da Académica. Nesse mesmo ano fui à final do Campeonato Nacional Absoluto e ganhei ao campeão em título. A minha irmã ia também progredindo no xadrez feminino e viria a ser campeã por várias vezes, e outras tantas vice-campeã. Consciente de que a competição em Portugal não bastava, o Marino ia arranjando financiamento e ocasiões para irmos jogar a Espanha e foi assim que competi em Albacete, Manresa, Torrelavega, San Sebastian, Pontevedra, etc.
Um novo projeto começava: levar o xadrez às escolas. No final dos anos setenta e ao longo dos anos oitenta o Marino ensinou a jogar e pôs em competição mais de 3000 crianças do distrito. Muitas continuaram a jogar e algumas chegaram à alta competição.
No entanto, era demasiado para ficar a cargo de um só homem, mesmo que com a ajuda da estrutura da Direcção-Geral dos Desportos e a colaboração dos sucessivos delegados. O Marino ensinava, organizava, treinava, assegurava a abertura diária da sala de xadrez, arranjava tempo para disputar torneios, individualmente ou com o Grupo de Xadrez da Guarda, elaborava notícias sobre a nossa atividade e mandava-as para as redações dos jornais. Nós íamos ajudando mas, pouco a pouco, fomos partindo para a universidade ou para fora. Quando o Marino se reformou, não havia ninguém à altura para continuar o seu trabalho e, pouco a pouco, tudo se foi perdendo: deixou de haver xadrez nas escolas, deixou de haver uma sala aberta diariamente, deixou de haver competição regular e tudo se passou a resumir à atividade federada do Grupo de Xadrez da Guarda.
Mesmo assim, quando, em 2004, o Grupo de Xadrez da Guarda ganhou o campeonato nacional da primeira divisão, metade da equipa que jogou, eu e o Rui Encarnação, ainda éramos da escola do Marino.
Marino Ferreira morreu na semana passada, aos 84 anos. Mantinha nos últimos anos o mesmo sentido de humor afetuoso e bem disposto. De vez em quando sentia-se mal do coração e tinha de ser internado na Cardiologia. Avisava-me sempre que tinha chegado, fazendo questão de anunciar “ainda estou vivo!”. Ia ter com ele e durante algum tempo, num tablet, víamos partidas de xadrez. Desta última vez, quando cheguei à Cardiologia, avisado pela minha irmã e por uma sobrinha dele, já o não encontrei.
Por: António Ferreira