Era uma vez um político chamado Álvaro. Podia ter sido um professor universitário mas graças a uma ascensão fulgurante no partido aos trinta e poucos já era membro do governo e pusera de lado a academia. As coisas não lhe corriam mal até que ventos políticos de mudança ditaram um compulsivo apagamento. Abraçando a carreira autárquica, pensou em candidatar-se ao principal município da sua região. A cidade-sede era apelativa, antiga capital, universitária, a cidade dos doutores, onde ele próprio se tinha formado e fixado. Porém, o partido preteriu-o para chamar os “verdadeiros” doutores: os professores da universidade. E assim, o Álvaro, como alternativa, candidatou-se à câmara na sua terra natal. Ganhou com facilidade e renovou mandato n vezes. Depois, contornando a lei eleitoral, subiu à presidência da capital de distrito. Aparentemente tudo ia de feição e o Álvaro sentiu que finalmente podia libertar-se do peso que carregava devido ao seu invulgar nome de família: Malamado. Nesta nova autarquia, beneficiando de programas de financiamento pôs-se a fazer feiras e festas e, finalmente, obras: uma avenida de entrada da cidade, um jardim, uma rua do centro histórico, um parque, um jardim centenário, um chafariz. No seu estilo autoritário, ao dinamizador cultural da câmara meteu-o numa prateleira, primeiro de galinheiro, depois, dourada. Ficou assim dado o aviso a outros funcionários que ousassem tirar-lhe protagonismo. Posso, quero e mando, e com dinheiro da UE também faço, terá pensado. E era preciso fazer, pois o seu projeto pessoal de presidir à câmara da cidade dos doutores continuava a tirar-lhe o sono. Mas para isso era preciso fazer obra, granjear fama de “presidente que faz”. Através de destes programas europeus de requalificação urbana, e beneficiando de uma permissível lei de contratações fez adjudicações de projetos e obras em série, frequentemente a roçar o teto de 75 mil euros até ao qual podia faze-las sem concurso. Não confiando na prata da casa chamou arquitetos “de fora”; de fora da cidade, mas de dentro do seu partido – um presidente de uma importante concelhia, a esposa de um prestigiado advogado e barão do partido, o filho do construtor que lhe emprestou a sede de campanha… A estes juntou um arquiteto “in” da “linha” não fora alguém dizer que não estava na moda. E foi aí que a porca começou a torcer o rabo. Porque aconteceu que estes arquitetos revelaram fraco conhecimento da história da cidade e dos seus regulamentos urbanos da arquitetura. Impondo o seu design, desatenderam a cultura arquitetónica, a tradição e a idiossincrasia locais. Indiferentes aos cidadãos, propuseram-se abater árvore e arbustos, relvados, muros, passeios e caminhos de terra batida, e parques e quintais, alterando ilegitimamente algumas arquiteturas de autor, premiadas, e património classificado e não classificado, verde e construído. E o povo, cioso da suas memórias, orgulhoso do seu passado, não gostou destas obras. E rejeitou-as. E os arquitetos autores dos projetos originais, a quem, ao arrepio da lei, o Álvaro achou por bem não passar cartão, também rejeitaram e opuseram-se à alterações das “suas” obras. E o Álvaro, que até tinha gostado dos projetos, porque eram afirmativos e iriam deixar a marca do seu mandato não gostou que questionassem as suas decisões. Vou fazer, quer gostem quer não gostem, costumava dizer. Queria lá saber se eram duas ou cinco ou cinquenta árvores, ou muros ou edifícios ou caminhos e instalações que tinham que ir abaixo ou se as boas práticas e os regulamentos mandavam manter a espécies vegetais, os caminhos permeáveis ou conservar as caixilharias de madeira no centro histórico. Os fins justificavam os meios. Afinal não se faz obra digna de registo sem modificar a cidade, sem arrumar com o passado, sem irritar os velhos do restelo. Sem fazer aquilo que no urbanismo se conhece como sventramenti. O conceito foi celebrizado no meio académico italiano mas a sua aplicação é de âmbito universal: renovar a cidade fazendo tábua rasa do velho. Só que o Álvaro não contava que os cidadãos da sua nova cidade, aparentemente adormecidos, despertassem a tempo do exercício da cidadania. E viu como se estes se uniram e contestaram obras nos espaços e edifícios públicos centrais que feriam de morte a narrativa histórica, apagando a identidade da cidade e, por conseguinte, também a da própria coletividade. E o Álvaro, contrariado, forçado a parar as empreitadas, sentiu que ao rejeitarem as suas obras estavam a rejeitá-lo a ele. Ele que tinha vindo para fazer carreira, é verdade, mas que de caminho se tinha prontificado a “salvar a cidade”. E enquanto enfrentava os movimentos civis e os tribunais para conseguir retomar os trabalhos, constatou que à sua volta poucos o apoiavam desinteressadamente. E por isso, órfão do reconhecimento público, sentiu-se isolado no seu pedestal autárquico, Voltava assim a ser o Álvaro Malamado. Agora na sua pior versão, pois a insistência em eliminar o carácter de lugares onde gerações tinham crescido e sido felizes, valera-lhe a atribuição, por um povo traído na sua confiança, de um indesejado epíteto: Álvaro, o Esventrador.
Nuno Martins, arquiteto