“Glória”, Vasco Pulido Valente, ed. Gótica, 2001. (Biografia de José Cardoso Vieira de Castro,1838-1872)
Vieira de Castro nasceu no Porto, filho de um juiz desembargador e sobrinho de um homónimo e célebre vintista, combatente no cerco do Porto e aderente da revolução setembrista. Tribuno, orador e político da Regeneração, foi um dos personagens mais controversas, paradoxais e românticos da segunda metade do séc. XIX. Tido pelos seus contemporâneos como «mártir da loucura da honra» (Jaime Moniz), «temperamento violento, índole apaixonada, alma nobre, esplêndido talento, coração afectuoso, sempre aberta a mão da caridade…» (Vitorino da Mota) e «carácter inquieto e febril» (Júlio César Machado), VC é valorizado pelos seus estudiosos contemporâneos, como Alexandre Cabral, entre outras facetas, na sua fulgurante inteligência e notáveis dotes oratórios. Em 1857, com 19 anos de idade e quartanista de Direito em Coimbra, meteu-se no célebre “Incidente Barjona de Freitas”, acabando excluído da Universidade por dois anos. Depois da célebre Rolinada, onde os estudantes parodiaram o Duque de Loulé, o tirânico reitor Sousa Pinto (bête noire da Academia e que haveria de mandar encarcerar Antero de Quental) determinou a proibição do herói emergente das lutas académicas se matricular novamente. Entretanto, Antero e a sua “Sociedade do Raio” promovem uma “transferência” da comunidade académica para o Porto, afim de aí fazerem chegar os seus protestos ao Governo de Fontes contra os desmandos do Reitor. Episódio de que depois se veio a desinteressar, mas que Vieira de Castro aproveitou para comentar a sua proeminência como herói do movimento. Porém, não perdeu o seu tempo e acabou por ficar na história porque, exactamente nesse período de «férias forçadas», conheceu Camilo Castelo Branco na Hospedaria “Estrela do Norte”, no Porto. Camilo tornar-se-ia o seu maior amigo e confidente. Camilo chegou mesmo a refugiar-se na sua casa do Ermo, em Fafe, em fuga das autoridades durante o processo movido contra ele e Ana Plácido pelo marido desta. Em 1859, regressou à Universidade, voltou a meter-se em sarilhos, desta feita na famosa “questão do traje” e foi riscado “perpetuamente” da Universidade (pena que não seria executada). Em 1861 publicou a obra “Camilo Castelo Branco: Notícia da sua Vida e Obras”, considerada por muitos como a legitimação ou desculpabilização do adultério de Camilo. Como se verá mais adiante, VC era assaz liberal liberal com as mulheres em geral, excepto com a sua, Em 1861-62, desempenhou o cargo de Vereador e Vice-Presidente da Câmara de Fafe e no ano seguinte regressou à Universidade para concluir a seu curso de Direito. Em 1865/66, cumpriu o seu mandato como deputado às Cortes pelo círculo de Fafe, tendo produzido mais de uma dezena de discursos que marcaram a contemporaneidade. Rodrigues Sampaio proclamou, na altura: «Nem a tribuna antiga, nem a moderna nos deram melhores modelos de eloquência». Com o advento do “fusionismo”, uma amálgama que juntou Regeneradores e Históricos, e graças às suas diatribes e ataques violentos a figuras gratas do regime, VC caiu em desgraça e a sua carreira política ficou num impasse. Percebendo isso, procurou a glória (e um casamento “dourado”) no Brasil. Em 1866, publicou os seus “Discursos Parlamentares” e partiu com 10 mil exemplares daquela obra, que projectava vender, para desipotecar a sua Casa do Ermo. Em 1867, pronuncia no Rio de Janeiro o célebre “Discurso sobre a Caridade”, com a presença do Imperador, e casa com a jovem Claudina Adelaide Guimarães, de apenas 15 anos, filha do riquíssimo capitalista Comendador António Gonçalves Guimarães. Dois anos depois, fixa residência em Lisboa, na célebre Rua das Flores, 109. Em 7 de Maio de 1870, surpreende a esposa a escrever uma carta de amor a José Maria de Almeida Garrett, sobrinho do escritor. Dois dias depois, assassina Claudina, por sufocação com a roupa da cama, depois de a ter tentado matar fazendo-a ingerir grande quantidade de clorofórmio. Entregando-se às autoridades, foi preso e logo acusado. A investigação e as sessões do julgamento mobilizaram a sociedade e a imprensa lisboeta da época. Por fim, foi condenado a 10 anos de degredo em Angola, pena posteriormente agravada para 15 anos. Em 5 de Setembro de 1871, com 33 anos, partiu de Lisboa para cumprir a pena. Pouco mais de um ano depois, em 5 de Outubro de 1872, com apenas 34 anos de idade, morria em Luanda, vítima de paludismo O eloquente orador deixou uma obra escassa, composta fundamentalmente por opúsculos e discursos: “Uma Página da Universidade” (1858), “Discursos Parlamentares” (1866), “A República” (1868), “Colónias” (1871). Por sua vez, foi inspiração romanesca para Camilo. O qual, baseado nesta autêntica tragédia da Rua das Flores, escreveu “O Condenado”, drama, e “Voltareis, ó Cristo”, novela, para além da “Correspondência Epistolar” entre ambos. Vieira de Castro, embora orador exímio, representa a eloquência pomposa, jucunda e improdutiva da Regeneração. A truculência vocabular e a busca incessante de protagonismo escondem mal as aspirações de um burguês da província. Cuja oratória, pretensiosa e polvilhada pelo radicalismo de 1848, deixou logo de fazer sentido em 1860. E mais parece saída do gongorismo de há um século atrás. leia-se um extracto de uma intervenção no Parlamento, em 1866: «Tomei a palavra nas doses homeopáticas da verecundia para ejacularo o meu ditame consentâneo e patriótico nesta ágora parlamentar, onde todos os republicanos estremes e impolutos devem levantar a manopla ferrada para cruciar, pungir e vapular os ícaros da ignorância… tomei a palavra, porque a palavra é Cícero… a palavra é a ideia durgindo da espuma níveo-cerúlea do pensamento sintético como a deusa Gnido brotando risos e espetalando boninas de vaga merencória que lhe é génese embriogénia… O nome? O nome? perguntais vós. O nome éuma palavra com que se nomeiam as coisas. O nome é Cicero truculentamente holocaustizado pelo ferro tribunicida do antonino pretoriano… etc». Talvez por isso, a sua última e mais brutal polémica tenha ocorrido com Ramalho Ortigão, e sobretudo Eça de Queiroz, após a saída do primeiro número de “As Farpas”. Com efeito, a desmontagem sistemática aí feita ao regime, à sociedade e à moral vigente foi encarado por VC como uma afronta de morte ao seu “brio”, ao seu “talento” e à sua “erudição”. Ainda bem que, graças à sua morte prematura, foi poupado à suprema humilhação se ter servido como inspiração para o “Conde Abranhos”, personagem-tipo fundamental do universo queiroziano. Com efeirto, tendo Eça “lido” na íntegra o seu tempo, colocou-se à frente dele. Pelo contrário, movido pela “glória” e pela ambição fátua, VC correu sempre atrás desse mesmo tempo. Não por acaso, no segundo número de “As Farpas”, em Junho de 1871, aparece uma nota assassina dirigida aos assanhados críticos do primeiro volume. Que são referidos, “en passage”, como irrelevantes “anónimos”. Claro que VC não aguentou tamanha afronta. Glória “oblige”.
Por: António Godinho Gil
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia