1. A diferença entre o bem e o mal é daquelas respostas que valem um milhão de euros. E não parece difícil. Mas o que é o bem na nossa atuação? O que é o mal? Se as palavras levarem maiúscula a oferta é mais baixa e a resposta mais fácil porque estaremos mais de acordo quanto aos princípios. Mas a dificuldade permanece, se pensarmos em cada momento em que agimos: o que é bem para mim pode ser mal para ti. Quantas vezes já fomos censurados por termos feito isto ou aquilo, ato em que julgávamos (ou nos iludimos) que íamos fazer o bem e que afinal nos foi apontado como gesto egoísta! Outras vezes nos repreenderam pelo pormenor menos bom, esquecendo o todo e a dedicação e intenção positiva. Quantas vezes dispusemos as coisas de modo dissimulado para fazer os outros felizes ou para evitar problemas no nosso núcleo de vida e afinal esse jogo nos é desvelado como mentira pura e dura! Quantas vezes já assumimos riscos e ultrapassámos regras em nome de um bem comum e depois somos apanhados como malfeitores e abusadores de regras! E tantas ocasiões já vivemos em que o nosso bem é também, supomos, o bem dos outros e estarmos felizes por gostarmos do que fizemos nos é apontado como supremo pecado (de egoísmo, orgulho ou manipulação)!
O Bem, por definição, quase sempre se resume a ter em vista “o outro” antes de pensarmos em nós próprios. Mas o normal não será “fazer o bem”? Assim, diante do jogo social em que vivemos, em que uma retribuição (pelo menos simbólica) cabe ainda a quem faz o bem, o Bem será sempre aquilo que ainda falta fazer. As pessoas boas são não aquelas que tiveram gestos supremos de generosidade mas aquelas de quem ainda podemos “esperar” os melhores gestos, os mais gratuitos, os mais imprevistos. As pessoas não “fazem” coisas boas, “são” pessoas boas e delas poderemos esperar coisas boas. É esse o melhor elogio que se pode fazer a alguém.
2. “O Bem e o Mal”, obra de final feliz de Camilo Castelo Branco, que se passa parcialmente em Pinhel e com personagens de Pinhel, Vila Cova e S. Julião da Serra (que aldeias serão estas?) no início do séc. XIX, foi uma feliz escolha para leitura de Natal. Desde o início do séc. XIX que diferenças até hoje! E no entanto, bem lá no fundo, a alma humana é igual, uma média entre ambição e resignação, entre brilho e cores baças, entre humanidade e animalidade, entre permanência e transformação. Entre Bem e Mal. E a História move-se através da luz que ilumina o que parecia condenado a esconder-se, através da informação que passa a circular e a erguer vontades. Também a inchar preconceitos e a reforçar os mais fortes em muitos casos. Até que chegue “o” tempo!
A ideia deste romance de nome trivial é mostrar que, para além dos nomes de família e das linhagens senhoriais, há sentimentos humanos que podem ser comuns a todos os homens, nomeadamente a estima familiar, a amizade e o perdão. Para além da defesa do casamento por amor, coisa pouco comum na época. A obra respira um ambiente de antigo regime mas também de conflitos sociais que mais tarde ou mais cedo irromperão. Camilo acentua que não fugimos na vida à nossa maneira de ser, ao nosso génio e que ele nos determina, para o bem e para o mal, mesmo quando (como neste caso) uma rapariga foge à vontade dos pais em família de nobres. Em paralelo descortina-se nesta obra a ideia otimista de que tendemos a um equilíbrio e que quando as coisas estão num beco sem saída vai aparecer uma alma boa que surpreendentemente vai empenhar o seu apreço por nós; que há almas na nossa vizinhança que são farol, guia e consolo e que basta dar um passo para recebermos o seu refrigério; que os maus serão castigados e o equilíbrio restabelecido e que isso é natural. Mas nem sempre assim acontece em Camilo. Basta lembrar o “Amor de Perdição”.
3. “O Bem e o Mal” não contesta a ordem política e sócio-económica vigente e mostra a sua aceitação tácita pela generalidade da mísera população (também da região de Pinhel) mergulhada num obscurantismo inocente e simpático e influenciado pela religião. Essa é a tendência dominante na obra. O livro era, aliás, de leitura recomendada nas escolas do Estado Novo nos anos 50. E no entanto entre a autoridade policial e os estudantes de Coimbra o nosso narrador coloca-se pelos segundos, na defesa do casamento por amor joga mesmo uma cartada pessoal e cheira a Proudhon uma utópica mensagem cristã que faz «um homem irmão e amigo do outro homem» e o apelo de um dos padres ao “Sermão da Montanha”. Quanto à região de Pinhel, para além do arcaísmo dos remediados fidalgos Gamboa de Barbedo, sobressai a imagem de um atraso irrecuperável que faz intitular estas terras como «terras abençoadas do obscurantismo» que assim continuarão, diz Camilo, «por estes quatro séculos por vir». E eu pergunto: vamos esperar tanto? Já passaram dois. Um Bom 2015!
(“O Bem e o Mal”, de Camilo Castelo Branco, ed. original de 1863; ed. comemorativa dos 150 anos, de 2013, apoiada pela Câmara Municipal de Pinhel, com fixação de texto de Manuel Neves e posfácio de João Bigotte Chorão)
Por: Joaquim Igreja