Lisbonnenuit (1989) é uma curta-metragem que, como muitas, desaparecerá na voragem do tempo se alguém não a guardar, mostrar, ou recordar. Foi produzida para o canal de televisão France 3 como um foto-romance (photo-roman). A realização é da fotógrafa francesa Françoise Huguier. Os actores são portugueses, entre eles Luís Castro e Rogério Samora. O texto é do poeta português Al Berto. No rodapé dos rascunhos para este projecto, ele anotou um excerto do primeiro volume dos diários de Maria Gabriela Llansol, Um Falcão no Punho: “os rios arrastam consigo a forma das cidades que atravessam”. O escrito de Al Berto foi publicado mais tarde com o título “Os Jardins do Paraíso”. Reconhecemos essa fonte quando lemos a descrição dos postais que um homem envia a uma mulher que o procura sem descanso: “Encontrei isto num livro: os rios arrastam com eles a imagem das cidades que atravessam. Amo-te, Mário.” Esta é uma história de encontros fugazes e paixões desencontradas, do amor como desacerto permanente vivido como desejo de acerto. A mulher vai eliminando os seus amantes. Lisboa, do rio e da noite, respira com ela.
Neste telefilme, o movimento é uma relação de continuidade entre instantes suspensos como em La jetée (1962), dirigido por Chris Marker, que também desafia a definição corrente de obra cinematográfica. Sendo uma sucessão de imagens fixas, é através da sua relação que este desafio é enfrentado. Lisbonnenuit não assume a ruptura visual entre imagens. Pelo contrário, as imagens fixas funcionam quase como fotogramas com duração. É essa duração que permite que as percorramos, na sua densidade, notando os seus pormenores. Desde o início se instala uma incessante aspiração ao movimento — uma libertação da estaticidade que chega a acontecer. Para além das vozes da narração, uma feminina outra masculina, outros sons são adicionados. O som directo faz eco das imagens, ao mesmo tempo que os diálogos quebram o fluxo da prosa descritiva e poética. As palavras ajudam-nos a ler as imagens, mas há sempre algo a mais que as imagens nos dão. Trata-se do mesmo olhar que Huguier tem apurado e desenvolvido na sua obra fotográfica noutros contextos. A fotografia que acompanha este artigo intitula-se “Intérieur de maison, Lac Tana, Ethiopie” (“Interior de casa, Lago Tana, Etiópia”, 1989) e pertence a uma série sobre a “África fantasma”. Mostra um compartimento pejado de objectos iluminados através de uma janela à direita, fora do enquadramento. Retrata ausências, evocando presenças. Os bancos têm diversas orientações, como se tivesse acontecido uma reunião (de que o bule sobre o fogão e a garrafa e os copos sobre a mesa são indícios), mas tudo permanecesse no sítio fixado por diferentes usos e ocorrências. Não são as vidas como rios que atravessam os lugares arrastando como elas imagens, instantes?
Sérgio Dias Branco