Sobre Platero informar-nos-ia nos termos que reproduzimos aqui o escritor que o inventou, Juan Ramón Jiménez, nascido em Moguer na Andaluzia em 1881, e morto em Porto Rico em 1958, dois anos passados sobre haver sido galardoado com o Prémio Nobel de Literatura. “Platero é pequeno, peludo, suave; tão brando por fora, que se diria todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro.” E a cidadezinha onde Juan Ramón veio ao mundo parece hoje em dia recordá-lo tanto, ou quase tanto, quanto insiste em manter viva a memória do burro por ele cantado, e que fica no retrato à la minuta, contido nas linhas transcritas acima. Platero e o seu amo configuram assim duas almas geminadas pelo afeto sem limite, pesem o que pesarem os artigos da doutrinação judaico-cristã, empedernida no seu afã de recusar à bicharada o direito de acesso aos esplendores da luz perpétua.
A si mesmo se concebia Juan Ramón Jiménez, e percebe-se agora por que razão, como “um andaluz universal”. Mas quem além de Espanha, ou do mundo que lhe vai conexo, deveremos perguntar, o registará ainda como importantíssima presença das letras europeias, perdido como se lhe acha o fantasma, e conforme ao que acontece a muitos outros, na galeria dos honrados com o definitivo troféu? Que houvesse ele escolhido porém como seu herói exemplar, não um príncipe, nem um guerreiro, não um lutador pelo destino da espécie a que pertencemos, nem sequer uma amorosa à Ana Karenina, mas um simples asno, epítome da mais humilde, da mais paciente, e afinal da mais sábia animalidade, eis o que nos toca o coração, e nos torna Ramón Jiménez merecedor da suprema homenagem de leitura, de gratidão e apreço, que lhe possamos prestar. Platero, o jumento, permanecerá como símbolo da árdua aliança entre homem e besta, e como atestado da inutilidade da soberba, da erudição, e da crença na fama.
Apenas um poeta maior, não se duvide, dos que não talham a versalhada pelas bulas da escola em voga, nem muito menos pela dogmática correção das suas intuições, ousaria dirigir a seguinte questão àquele amigo de orelhas grandes, entretanto alçado ao nirvana do reencontro completo, “Platero, será verdade que nos vês? Sim, tu vês-nos. E eu julgo ouvir, sim, sim, eu ouço no fulgor do poente, adoçando o inteiro vale das vinhas, o teu terno zurro lastimoso.”
Bendita seja pois a Academia Sueca que por uma vez, por uma só vez, imortalizaria um burrico, isto contra o destino dos inúmeros ilustres que o tempo precipita no mais abissal dos esquecimentos!
Por: Mário Cláudio