«Tocar na língua materna é como tocar na mãe»
(Francisco Álvaro Gomes, in O Acordo Ortográfico)
1. Algumas reações ao Memorando da troika e às medidas daí derivadas são extremamente semelhantes às que sentimos todos os dias a propósito do acordo ortográfico. Medo, revolta, humilhação é o que mais sobressai: se fosse hoje, o Acordo, por razões colaterais, teria que ser levado a referendo e perderia.
Ao confrontar nas obras de Francisco Álvaro Gomes a argumentação “popular” acerca do Acordo com a sua refutação compreendemos o povo que somos. Em primeiro lugar um povo orgulhoso do seu passado. A “superioridade” da variante lusitana em relação às outras, nomeadamente a brasileira, inflama as conversas. A demografia diminuta de Portugal, a presença brasileira no mundo são argumentos que não significam nada para a maior parte das pessoas que estão contra a mudança ortográfica, que ainda se julgam no “glorioso” séc. XVI em que dávamos mundos ao mundo. A tese da submissão ao Brasil é assim a que mais deita gasolina na fogueira num momento em que nos parece que a Europa nos devia deixar de apertar a garganta e em que a primeira medida “a sério” nos vai fazer “saltar a tampa” na segunda quinzena de novembro.
2. A conversa vulgar (isto é, do vulgo) esconde aliás os fundamentos mais importantes do acordo. Em primeiro lugar, que é legítimo mexer na língua e transformá-la. Em segundo lugar, que se podem obter vantagens da mudança no sentido de uma maior afeição à língua ao se optar por uma aprendizagem mais fácil da escrita. Em terceiro, que estávamos num momento de proximidade à deriva, dada a fase de crescimento das variantes africanas do português, e que era portanto preciso agir. Por último, a projeção do português no mundo não é a mesma coisa sem unidade ou com unidade da grafia.
Por partes. Em primeiro lugar, o argumento de que na língua não se toca. Sabiam que até ao séc. XVI não havia acentos? Sabiam que no latim não havia acentos mas simples sinais de marcação de quantidade? O acordo não enveredou por cortar os acentos mas seria mesmo o apocalipse se se optasse pelo desaparecimento dos mesmos? Que fique ao menos na cabeça das pessoas que o trema (o sinal com dois pontinhos, sim) existiu durante 25 anos na língua portuguesa e morreu sem grandes choros em 1945, tendo-se mantido na grafia brasileira até ao presente acordo ortográfico. Alguém em Portugal ainda chora por ele? Para os que defendem a imutabildade da ortografia vejam por exemplo os jornais do tempo da República numa das últimas capas da revista Praça Velha (reproduzo “adhesões locaes”, “portugueza”, “Affonso”, “affectuosas”, “victoria”, “collega”, “attitude”, etc., etc.) Aceitariam escrever assim?
Contra aqueles que dizem que não vale a pena tocar na ortografia por não ser o essencial na aprendizagem da língua, convém dizer que a facilidade da escrita e a simplicidade da ortografia são bens incalculáveis que podemos deixar melhorados às nossas crianças. Ninguém desconhece que muitas pessoas viram comprometido o seu futuro por terem entregue um curriculum vitae com erros ou sempre viveram marcados pelos riscos vermelhos por baixo das palavras erradas nos testes escolares. Como refere Francisco Gomes, a ortografia, sendo um bem social, tornou-se também num “problema social”. Que se pode prevenir.
Quanto aos países de expressão portuguesa e à estabilidade que esta reforma traz, quase não são necessárias palavras. Já lhes chega como desafio a construção do próprio vocabulário local e de dicionários competentes.
Alguns furúnculos do acordo (por exemplo, as duplas grafias agora toleradas, as regras apertadas do hífen contra a anarquia existente) não escondem o efeito positivo que ele vai ter na aprendizagem da língua pelos novos escolarizados. Não foi possível ir mais adiante no Acordo mas haverá pequenos passos que poderão ser dados mais tarde.
3. A aplicação do acordo nas escolas, que vamos adiando alegremente, não apareceu numa altura de grande sorte. Com a crise instalada nas conversas e na vida, a imagem beliscada (aliás, cheia de mossas) dos políticos que colocámos no poder e que não souberam, por ignorância ou voluntarismo, ver os caminhos que nos levavam à ruína, não ajuda a afastar a ideia de que por similitude “eles”não tinham direito de mexer na língua. Mas tiveram e têm porque as decisões sobre a língua não podem vir dos linguistas e escritores mas de quem representa os utentes da língua até porque nas línguas age-se por prevenção. Oxalá tivessem tido sobre as finanças a suficiente clarividência que demonstraram no Acordo Ortográfico.
Por: Joaquim Igreja