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O poder do YouTube

Em princípio ninguém deveria ir para a prisão sem ter primeiro sido condenado num julgamento justo, em que lhe fossem possibilitadas todas as garantias de defesa. Apenas assim há alguma garantia de que um inocente não venha a ser preso. É por isso, pelo horror à ideia de que é possível serem erroneamente punidos inocentes e que é preferível a isso deixar escapar um culpado, que temos um sistema aparentemente tão amigo dos criminosos.

Temos antecedentes históricos que ainda pesam no nosso inconsciente coletivo e no inconsciente dos nossos legisladores. Foi a Inquisição, com o seu cortejo de atrocidades judiciais e a sua especial apetência pela tortura para obter a confissão, a rainha das provas. Foram os tribunais plenários do fascismo e o seu desrespeito pelos direitos dos arguidos. Foi a PIDE e a máquina de delação, repressão e violência construída à sua volta. Tudo isto contribuiu depois, já em democracia, para uma legislação penal aparentemente demasiado branda e “garantística” para um país que abandonou, vemos agora, há muito os brandos costumes.

Num sistema como o nosso há sempre muita relutância em aplicar a prisão preventiva a alguém que ainda não foi julgado, não teve por isso oportunidade de se defender cabalmente e podemos, com provas meramente indiciárias, estar a levar um inocente para a cadeia. É verdade que o nosso sistema planta uma série de objeções e alçapões à aplicação dessa medida: tem de estar em causa um crime de certa gravidade, estar suficientemente indiciado, haver perigo de fuga, de continuação da atividade criminosa, de destruição de provas, haver alarme social em caso de permanência do suspeito em liberdade. Outra regra: a prisão preventiva apenas é aplicável quando não seja aplicável nenhuma das outras medidas de coação (destinadas a garantir que o arguido seja julgado, que não prossiga a atividade criminosa, que não destrua provas, etc.). São tantas as objeções e dificuldades que a prisão preventiva é ou deveria ser hoje excecional.

É por isso extraordinário que um juiz decida aplicar essa medida a uma adolescente que participou no espancamento a outra. Desmontado o caso nas suas partículas elementares, temos duas miúdas, não especialmente corpulentas, não aparentando uma especial força física, a dar uns empurrões e uns pontapés a outra miúda – enquanto dois rapazes filmam para o YouTube. Contado assim parece uma história parva, mas não especialmente grave, das escolas secundárias dos subúrbios de Lisboa. E não especialmente grave até porque não há notícia de ferimentos de monta. Todos ouvimos já coisas piores com consequências bem mais brandas.

Qual é a novidade? Foi filmado e viu-se como se passou a coisa. Viram-se duas raparigas a espancar outra e visto foi muito pior do que contado. Vimos uma miúda enrolar-se no chão a procurar cobrir-se da pancada que chovia. Vimos a perversidade dos rapazes a filmar, a cobardia do ataque em grupo sobre uma vítima isolada e reconhecemos a estratégia das hienas. Vimos como não contam já nada os valores dos heróis da nossa infância: Ivanhoe, por exemplo, nunca bateria num adversário caído, estaria sempre do lado mais fraco e saberia distinguir com clareza o bem do mal. Como dizia um orador das conferências TED, precisamos urgentemente de reabilitar a ideia de heroísmo. E é preciso que os juízes comecem a imaginar com mais clareza o que realmente se passa, que há pontapés especialmente perversos, mesmo que dados com sapatilhas cor-de-rosa.

Por: António Ferreira

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