Programas de Português citados in O Ensino do Português, de Maria do Carmo Vieira
1.Em tempo de maus resultados dos alunos do 12º nos exames de Português (na 1ª fase foram 51% de negativas na minha escola quando os alunos vão a exame no mínimo com 10 valores), deu-me para ler O ENSINO DO PORTUGUÊS, de Maria do Carmo Vieira (MCV), livro de certa forma credibilizado pela chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos, dirigida por António Barreto. Mas, logo às primeiras páginas, que decepção enorme! Se ia com perspectivas de novas linhas para novos programas de Português ou para a execução dos actuais, se esperava algo que ligasse a concepção de programas à sociedade e à cultura actual em Portugal, devo confessar que nada disso aqui está. O que aqui encontramos neste livro frio como o gelo é um revivalismo ensimesmado, uma defesa da antiga pedagogia ou da ausência de pedagogia, um conformismo que eu não achava possível. É mesmo um andar para trás que esta autora defende, um regresso à escola dos anos 50 e 60 que, para além dos muitos diplomados que criou, engendrou também exclusão até mais não.
2.Em primeiro lugar, grande parte da teoria da autora gira à volta do dever da predominância da literatura no programa de Português e da sua centralidade. Na verdade, Mª Carmo Vieira não consegue explicar porque é que a literatura como origem única dos textos dos manuais poderia resolver os problemas de quem domina mal o português. MCV esquece que o mundo mudou e que o mundo já não gira à volta unicamente desta forma artística, tendo as necessidades no campo da arte sido substituídas por múltiplas actividades nomeadamente na área da música, das artes plásticas e do digital. E esquece também que o mundo actual exige novas respostas nomeadamente no que respeita ao domínio pelos alunos dos formatos dos textos utilitários. De que serve submergir os alunos em literatura se a linguagem do mundo actual não é essa e se este mundo exige uma pluralidade de linguagens e competências de expressão? Ao contrário do que pensa MCV, o homem a educar já não é o mesmo, o mundo que o rodeia muito menos o é, o modelo de homem a atingir deixou de ser o que era há 50 anos. O homo cultus é muito diferente do homo literatus. Neste campo, chega a ser chocante a forma como a autora gostaria de enclausurar os jovens em meia dúzia de autores clássicos que ocupariam todo o Ensino Secundário e sem derivas: Fernão Lopes, Camões, Gil Vicente, Padre António Vieira, Almeida Garrett, Eça de Queirós e Fernando Pessoa. Diz ela que mesmo os textos avulsos, de épocas diferentes, colocados nos manuais ao lado dos clássicos como exemplos de intertextualidade, são malditos e só distraem do conhecimento integral das obras daquela meia dúzia de autores. O moderno em diálogo com o clássico, o utilitário em diálogo com o artístico, isso são ideias de lunáticos. As aulas de Português são para MCV aulas de Estudos Literários. Mas diga-se, para quem não sabe, que na realidade continua a ser o texto literário a ocupar mais de dois terços das aulas de Português do Secundário.
3.Depois vem a saga do “trabalho individual” vs “trabalho colaborativo”. Dez anos depois do início do século XXI, esta professora defende que os professores devem trabalhar cada um por si, sem coordenação a sério entre as planificações, defendendo mesmo que isto coarcta a “criatividade”. Defende pois MCV que a criatividade é posse de cada um (uns têm, outros não têm) e trabalhar em grupo é um ataque a essa “liberdade” de ser criativo. Em que galáxia vive esta senhora, meu Deus? O trabalho colectivo significa porventura que cada um vai apresentar as suas matérias de modo exactamente igual aos outros? Isso seria impossível. Mas uma aproximação real e uma coordenação de planificações, de critérios de avaliação, de matrizes, mesmo de testes, criará sempre maior igualdade dos alunos perante as diferentes estratégias de ensinar dos professores. Por outro lado, será difícil aceitar que todos aprendemos uns com os outros e que daí resultamos pessoas mais ricas (seja no trabalho de exegese textual, de análise literária, de pesquisa gramatical, de reflexão sobre técnicas de avaliação)? Tudo isto, para a autora, são horas perdidas roubadas à preparação individual.
4.Quanto aos critérios de avaliação aplicados a actividades que saem do simples debitar das matérias e da análise escrita do texto literário, MCV não diz palavra. A introdução de espaços de leitura recreativa na escola, a importância da expressão oral, a valorização da oficina de escrita e da escrita livre, tudo isso são mundos que não existem para MCV. E todas elas são áreas em que os alunos na realidade se têm valorizado nos novos programas. E sabem os professores trabalhar com elas? Essa é outra questão. A formação contínua tem sido nos últimos anos uma cova de esperanças frustradas nas opções e áreas de formação. Tanto tempo e dinheiro perdido.
5.Finalmente o facilitismo que MCV considera estar reinante no ensino do Português nas escolas. É verdade. Mas isso não é fenómeno ligado ao Português mas a todo o ensino escolar, público e privado. Fenómeno induzido pelo ministério, pelos professores, pelos pais, pela sociedade. Fenómeno de que é difícil mas possível sair com estratégias conjuntas e com coragem das escolas de serem mais exigentes que as escolas ao lado. Mesmo que as classificações no imediato sejam mais baixas que as das outras. Esse passo é o mais difícil de dar.
Por: Joaquim Igreja *
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* Joaquim Martins Igreja inicia nesta edição uma colaboração mensal com o jornal O INTERIOR com uma crónica intitulada “Tresler”. O novo colunista tem 52 anos, é professor de Português na Escola Secundária Afonso de Albuquerque (Guarda) e coordena também nesta escola a publicação do boletim escolar EXPRESSÃO, desde 1992. Para além destas funções, é coordenador da programação cultural da Fundação INATEL – Guarda. Joaquim Igreja é licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa.