Das memórias da minha infância feliz e nervosa, uma das mais antigas é a dos meus pais a sorrirem quando me olhavam. Vejo-os, como se fosse agora. Aqui estão eles, atentos ao mais pequeno sinal vindo de mim: ao levantar da mão, ao início do choro, ao balbucio da palavra. O sorriso da minha mãe é alto, aberto e alegre. O sorriso do meu pai é contente, contido e calado. Esses dois sorrisos entregam-se um ao outro, concluem-se um no outro, mas é em mim que se fundem, tornando-se um. Depois, voltam a ser dois; a seguir, outra vez um. Eu olho para esses rostos que sorriem e sei que o mundo me pertence. Olho-os e vejo uma luz que, mais tarde, vi no céu limpo de um Verão atravessado pelo vento.
Quando a minha irmã nasceu, esses dois sorrisos passaram a encontrar-se no rosto dela. Eu recebi essa transferência, não com ódio, rivalidade e ciúme mas com suspeita, espanto e curiosidade. Logo depois, o meu rosto começou a aproximar-se do seu rosto e os dois sorrisos dos pais tornaram-se, de novo, um, ao fitarem o encontro dos irmãos. Com esse nascimento que me acrescentou, descobri, com cuidado, que o mundo não era só meu. Mas aprendi também, com consolo, que não estava só nele.
Mais tarde, a minha mãe ensinou-me a pôr-me no lugar dos outros. Sempre que o meu egoísmo me tornava colérico, ou o meu juízo se fazia injusto, ela perguntava-me: “Gostavas que te fizessem o mesmo?! Que te tratassem assim?!” Eu respondia-me, silenciosamente, que não e corrigia o impulso, pesando os meus actos numa balança infalível. Ainda há pouco tempo me disse isso e, mais uma vez, teve razão ao dizer-mo. Espero que continue por bons anos a repetir-me essas palavras que me tornam mais fiel à justiça.
Quase sempre a vida nos leva a atirarmos os nossos actos para longe. Recusamo-nos a ver o que fazemos e, se vemos, trocamos a responsabilidade pelo arrependimento. Quase sempre a vida nos envolve os sentimentos como se fossem rolos de papel amarrotado. Torna-os de fabrico alheio, mercadoria recebida e dada com automatismo e desatenção. Muitas vezes, restam apenas de nós as paixões da alma – as mais violentas, como a cólera, que gera a crueldade, ou a vaidade, que provoca a soberba. Essas são a única bagagem autêntica de muita gente. Quando, todas as manhãs, encontro a voz da minha mãe, ela traz ao tempo em que sou o tempo em que fui, levando-me a coincidir comigo e com o antes de meu depois.
Marcel Proust mostra-nos que, junto da memória involuntária e da madalena embebida em chá que lha despertou, há uma memória contra a dispersão do mundo e a distracção da vida. Essa memória é vontade, atenção e escuta.
Numa passagem muito bela de seu Livro, em que nos põe em frente dos olhos as cenas sucessivas da grande peça nocturna do beijo materno dado antes do adormecer, com os seus perigos, receios, ansiedades e chantagens, esse grande nervoso, que afirmava ser a raça dos nervosos o sal da terra, fala-nos da memória como escuta. Durante muito tempo, tive estas palavras no meu bolso e, frequentemente, encontrei nelas uma luz que descendia da antiga luz que vinha do sorriso dos meus pais. Por isso, de tanto as reler, agora quase as tenho de cor: “Foi há muitos anos. A parede da escada onde eu via subir o reflexo da vela do meu pai já não existe há muito. Também em mim muitas coisas foram destruídas que eu julgava que iriam durar sempre e outras novas foram edificadas dando lugar a dores e alegrias novas que então não podia prever, tal como as antigas se me tornaram difíceis de compreender. Também há muito que o meu pai deixou de poder dizer à minha mãe: ‘Vai com o pequeno’. A possibilidade de horas dessas nunca mais irá renascer para mim. Mas de há pouco tempo para cá recomeço, se lhe dou ouvidos, a distinguir muito bem os soluços que tive forças para conter diante do meu pai e que só estalaram quando tornei a ficar a sós com a minha mãe. Na realidade, esses soluços nunca cessaram; e só porque a vida está agora mais calada à minha volta é que os ouço outra vez, como os sinos de conventos que são tão bem cobertos pelos ruídos da cidade durante o dia que parecem ter parado, mas que recomeçam a tocar no silêncio da noite”.
Por: José Manuel dos Santos