Havia os domingos em que se encontravam. Os pais conversavam. Nunca se preocuparam em saber do que falavam. Os diálogos dos adultos eram fastidiosos para adolescentes com a vida inteira pela frente. Saíam de casa e as palavras brotavam como se tivessem estado a amadurecer numa penumbra e vissem, naquelas tardes de domingo, a estrada para a libertação. Assim as trocavam, rosadas e doces, como fruta sumarenta. Comiam as palavras e bebiam os sonhos que um dia, sabiam, teriam que ser reais.
Caminhavam sem destinos traçados, livres de preconceitos e de tudo o que ousasse impor barreiras à alma. Sabiam de cor as letras das canções em voga. E cantavam. Às vezes rapazes mais atrevidos, à saída do metro, enviavam-lhes piropos que não eram, para elas, um insulto. Riam muito e deliciavam-se com gelados junto aos bateaux-mouche. Sem se aperceberem tinham a torre Eiffel por diante e estendiam-se na verde languidez do Champ de Mars.
As tardes de domingo em Paris eram mágicas. Sentia-se no ar uma leveza maior. As ruas e avenidas cresciam dentro dos olhos. Um quase ritual guiava-as de novo até às margens do Sena. Ali se sentavam para que as águas fluíssem ritmadas pelas palavras. O tempo era sua pertença. Sabiam-no nas mãos tatuado.
Anos antes os pais levaram-na ao Porto. Só muito mais tarde percebera o verdadeiro fundamento dessa viagem. Não fora apenas a urgência do pai em lhe mostrar pela primeira vez o mar, que permaneceria o instante da cristalização da eternidade, com a voz ao longe da mãe a gritar-lhes – o mar leva as pessoas, não se aproximem. Nem o kilt que lhe compraram e que lhe assentava tão bem, nem a paragem junto à ponte levadiça, um espanto retesado nas mãos fechadas nos bolsos, serviriam de justificação.
Um amor desmedido e vivo no olhar do pai insistia ninguém poder dividir. Tudo seria descomplicado não fosse a polícia política e um regime repressivo. Mas a tenacidade de um pai ninguém pode bater. Uma decisão autoritária jamais imporia limites ao amor. E o salto era tão fácil de dar.
A mãe dava-lhe a mão nas ruas de Paris. O bulício de uma cidade cosmopolita enchia-lhe os olhos. Na retina morrerão com ela as vestes coloridas dos monges budistas que se movimentavam aos pares nas avenidas. Numa espécie de convocação a mão da mãe guiava-a até uma igreja. Dizia que se devia agradecer a Deus. Ajoelhava-se e falava com Deus.
Ela, criança para quem os mistérios da fé eram verdadeiramente um mistério, não sabia o que dizer a um Deus invisível e intocável. Sentava-se num banco e olhava à volta. Sentia o silêncio. Aquele silêncio estava imbuído de uma paz brutal e de uma perturbação fresca e viva que a ofuscava. Ainda o sente na pele, nos ossos, nos olhos, nos sentidos. Continua a envolvê-la como se as mãos de Deus se estendessem sobre ela.
Parecem tão distantes essas tardes de domingos adolescentes. As palavras ainda as deleitam como fruta madura. Os sonhos terão sido o mais análogo à realidade. Ou foram a devida realidade. Nunca devemos reclamar do que não conseguimos concretizar dos nossos sonhos. Era ontem e já tinham chegado à conclusão que tudo tem um tempo. Que nada acontece sem motivo. Foram sempre uma espécie de filósofas da própria existência. Só elas são capazes de entender. De arrancar o coração com as mãos e trocar de coração.
Os pais ainda devem estar a conversar. Mas algo lhes diz que as aguardam. As tardes de domingo, mesmo em Paris, não são eternas.