Há dias, alguém falava da inflação das palavras, de como nos deu para inflacionar palavras como “resiliência”, ”crise”, “perigo”, “imigração”, “saúde”, “educação”, emparelhando-as com “extremamente”. Nesta ânsia de delapidar a linguagem ou, quem sabe, de a usar com fins ilícitos, já nada é o que é, ou, vá lá, “muito” e “pouco”, ou “grande” e “pequeno”. A resiliência nunca é só resiliência, ou pouca ou muita resiliência, tem sempre de vir atrelada a “extremamente”. A crise não é só crise, ou pequena ou grande, tem de ser extrema. O mesmo tem acontecido com o perigo, a imigração, a saúde e a educação. Perante a possibilidade de ser ou existir, tudo é “extremamente”. Extremado e extremo. Fenómeno a que talvez não sejam alheias as crescentes clivagens políticas, porque todos sabemos que espicaçar ânimos requer artimanhas como este tique linguístico que atualmente dá em nos entrar ouvidos fora. É como se os “artistas” do muito falar sem nada dizer ou provar, os nossos velhos fala-baratos, tivessem agora dimensão universal. Estão e são ouvidos em todo o lado. Até parece uma espécie de praga, de mau-olhado, lançada sobre nós pelos fala-baratos de outrora, levando-nos a arrepender de, enquanto podíamos, não lhes termos cortado a língua e acabado, de vez, com o linguarejar. O que, dado vivermos onde quem quisesse ser ouvido por muitos tinha primeiro de conseguir que um jornal, uma estação de rádio ou de televisão, que já foi só uma, se dispusesse a difundir-lhe a conversa, nem será de estranhar. Mas lá que o devíamos ter feito, devíamos, porque agora os fala-baratos dispõem das redes sociais para chegar a todo o lado, desde rádios, televisões e jornais, até ao parlamento, enquanto deputados. Desde que descobriram que acoplar “extremamente” a tudo servirá, muito bem, para se impingirem aos outros a justificar que se alienem prioridades, em vez de, lúcida e inteligentemente, as hierarquizar, os fala-baratos têm contribuído, indelevelmente, para a fragmentação dos problemas que nos assola.
Não lembrará, nunca, a alguém questionar um extremamente necessário, extremamente ameaçador, extremamente vulnerável. Um “extremamente” é sempre inescrutável e imperativo. Será, mais ou menos, por isso que desistimos de resolver problemas como o da falta de médicos, inexplicavelmente parece que só no SNS, antes preferindo o extremar de problemas praticamente desconhecidos e residuais. A resolução de problemas estruturais acaba, deste modo, por ser substituída pela urgência, extrema, de descobrirmos que estrangeiros, e, de entre esses, os que, mesmo contribuindo para o sistema, queremos expulsar do sistema, nos andam a sabotar o SNS. Será, mais ou menos, dessa forma que desistimos de resolver o problema da falta de professores, porque a urgência, agora, tem sido a de resolver os problemas dos que existem, fragmentando a educação em uns e os outros, em presente e futuro e, à semelhança dos problemas da saúde, não resolver coisíssima nenhuma. Será, mais ou menos, assim que desistimos de resolver os problemas relacionados com a pobreza e a habitação, acoplando um “extremamente” à insegurança que não existe num país, universalmente, considerado seguro. Será, mais ou menos, assim que estamos quase a desistir dos serviços estatais e da liberdade que os mesmos nos conferem. O que, segundo quem percebe mesmo disto, será – com toda a propriedade – “extremamente” ameaçador da nossa democracia. Pelo que estará mais do que na hora de fazermos o que no passado não tivemos paciência para fazer: desmontar, de vez, os discursos dos fala-baratos desta vida.