A realidade é um esforço, ou uma fantasia, dependendo do lado da vida que nos calhou. A realidade pode ser a manada de gnus, que serve de alimento aos jacarés e aos leões. Mas podíamos ter nascido crocodilos. A vida pode ser a miséria de Calcutá, a indefesa na faixa de Gaza, a morte nos escombros do Bali ou de Valência. Mas podemos viver num lugar de luxo no topo de um morro que não resvale. Somos inevitavelmente aquilo que nascemos e podemos ser um pouco mais com o nosso esforço. O gnu nunca será um crocodilo. A macieira nunca dará tomates ou bananas. A realidade é, pois, uma marca fortíssima, dependendo do lado que nos calhe. Ser lindo não é para todos. Ser herdeiro de fortunas não é para todos. Voar é só para alguns. A realidade é assim uma tragédia da imutabilidade? De facto, a zebra verá chegar os predadores com pena do filho que matarão. As sardinhas serão alimento de golfinhos e pardais e tubarões. As que sobrarem devoram-nas os homens. E é melhor ser golfinho ou cavala? A criatividade e a imaginação farão a diferença nestes processos. O sofrimento nasce do desejo e, por essa razão, se a zebra quisesse ser um leopardo, sofria. Se o gaio desejasse ser um leão, chorava. A realidade é que parece que apenas os humanos são donos da criatividade e possuem ambição. Os cães não pedem riqueza. Os gatos não roubam os multibancos. Então podemos conceber que os gnus atravessando o rio são mesmo assim felizes? Claro que pressentem o perigo, claro que os afetados sofrem, mas a manada encaminha-os para um fim. Desse modo são as turbas de gente. Do mesmo matiz são as multidões empolgadas que gritam. Por isso escolhi a solidão criativa e o controlo dos desejos. Sofro? Por vezes, porque gosto de desnecessidades e pode faltar para cobrir os pés.