No passado dia 25 de novembro foi retomada a circulação na Linha da Beira Alta, entre as estações de Celorico da Beira e Vilar Formoso. As obras de requalificação começaram em 2022, mas a sua conclusão foi sendo sucessivamente adiada, apesar dos elevados custos que isso representou e da sua importância para a região. O mesmo aconteceu com a sua construção em finais do séc. XIX.
Visita real à Guarda
A Linha da Beira Alta, que liga a Pampilhosa a Vilar Formoso, quase paralela ao rio Mondego, foi inaugurada em 1882. Era considerada fundamental para o desenvolvimento e modernização do país e capaz de o inserir no contexto da Europa dinâmica e próspera, de então. Por outro lado, ao mesmo tempo que ligava o porto e cidade de Lisboa à Europa, arrastava nesse processo evolutivo as regiões abrangidas no seu trajeto.
Por estas razões, pelo esforço financeiro que implicou, e pela sua importância estratégica, a presença da Família Real, com a sua carga simbólica, era obrigatória nos atos mais solenes da sua inauguração. Toda a imprensa nacional, assim como alguma estrangeira, acompanharam as peripécias da viagem.
A última receção Real na Guarda
A última visita Real à Guarda tinha ocorrido em 1704, quando D. Pedro II, de Portugal, e D. Carlos III, arquiduque da Áustria e rei de Espanha, aqui se encontraram por razões políticas e militares. Foram recebidos às portas da muralha pelo Senado, onde António das Póvoas e Brito, que era o vereador mais velho, ofereceu as chaves da cidade, num prato dourado, a D. Pedro. Recebeu-as, e mandou ofertá-las ao monarca espanhol, o qual, pegando nelas, voltou a colocá-las na bandeja.
Ora, tendo já passado mais de cem anos depois da última presença Real na cidade, na realidade, ninguém na Guarda tinha conhecido um rei, por muito que dele ouvissem falar. Era, pois, natural, que fosse com grande expetativa que as gentes da região aguardassem a visita de D. Luís I.
O mesmo acontecia com as autoridades locais. Ansiosas, há muito que preparavam a visita da Família Real. Os principais edifícios públicos foram engalanados a preceito e o mesmo aconteceu com as ruas, desde o entroncamento da Dorna até ao largo do Governo Civil e ao quartel do Regimento de Infantaria 12.
A visita à Guarda no dia 5 de agosto
O comboio Real, composto por «quatro carros salões, dois de 1ª classe, três de 2ª, e duas bagageiras», saiu de Lisboa pelas 10 horas da manhã do dia 2 de agosto, tendo partido à frente a máquina exploradora para examinar a linha. Depois das estações de Coimbra e Figueira da Foz, seguiu-se Mangualde, onde a família real iria pernoitar e no dia seguinte seguir para a Guarda. Mas a rainha sentiu-se mal e mandou-se avisar que a viagem seria adiada. As comunicações eram deficientes, os jornais não foram devidamente informados, e como já tinham a notícia da chegada à Guarda feita como se tivesse ocorrido no dia 4, foi assim que a publicaram. Foi uma “barracada” que ainda hoje continua a ser verdade e a gerar confusões, mesmo em trabalhos académicos. Os transtornos foram enormes, não havia onde dormir nem comer e eram milhares as pessoas que esperavam na cidade. Nunca aqueles campos serviram de cama a tanta gente…
A viagem até à estação da Guarda foi rápida. Depois de uma curta paragem, mas memorável, onde «o povo mostrou o mais que é possível, o seu enthusiasmo e sua alegria pela visita de suas majestades».
Havia duas bandas de música, «toda a margem da linha, em uma grande distancia, estava coalhada de povo». Para além das figuras ilustres da cidade havia milhares de pessoas, muitas famílias espanholas, e muitos «camponeses que há dois dias permaneciam acampados no monte».
Pouco depois, o comboio Real seguiu para Vilar Formoso, onde foi servido um lauto almoço.
A viagem de regresso à Guarda deu-se pelas 13h40, assinalado na cidade pelo toque dos sinos.
Ladeavam a estação mais de 30.000 pessoas, que «à chegada do comboio desataram na mais calorosa expansão de regozijo que é possível registrar e que é impossível de descrever».
Da estação seguiu para a cidade a Família Real, composta por D. Luís, a Rainha D. Maria Pia, o príncipe D. Carlos, e o infante D. Afonso, tomou assento nas carruagens do paço, acompanhada de vinte carruagens omnibus e diligências com pessoas de diferentes categorias. A íngreme estrada que dá acesso à cidade estava embandeirada com mastros azuis e brancos.
Na Dorna, no entroncamento entre a estrada de Pinhel e Celorico, onde tinha sido construído um belo arco de buxo acastelado, encimado com as armas da Guarda, foram entregues ao Rei D. Luís I as chaves da cidade.
Seguiu-se a visita à Sé, onde a Família Real foi recebida, de cruz alçada, pelo cabido e pelo clero, mas não o bispo, pois D. Manuel Martins Manso tinha falecido em 1878 e ainda não havia sucessor. Houve “Te Deum” na catedral, com a solenidade própria, acompanhado pela banda do Regimento de Infantaria, seguindo-se várias visitas na cidade, entre elas o Asilo D. Maria Pia e a “Casa do Monte Pio Philantropico”, sempre no meio de uma multidão compacta nas ruas enfeitadas, com flores, bandeiras nacionais e com colchas nas janelas.
Mas, de todas, destacavam-se as iluminações da Rua Nova da Estrada, onde, ao centro, foi erguido um arco triunfal. A decoração desta rua esteve a cargo dos comerciantes, e como reconhecimento do seu esforço foi-lhe atribuído, pouco depois, o nome de rua do Comércio.
A comitiva dirigiu-se para o edifício do Governo Civil, onde depois de breve descanso, foi feita a receção ao monarca e servido um jantar de gala, para 80 talheres, fornecido pela Casa Pucci, de Lisboa.
O Rei D. Luís I, um espírito sensível e culto, dedicado às artes, que falava sete ou oito línguas, salientou a importância da obra e manifestou o seu agradecimento à cidade e ao seu povo, que disse nunca mais esquecer.
Desta sumptuosa refeição sobejou muita comida, a qual reverteu a favor de instituições locais: o hospital, a cadeia, o asilo e o Monte Pio.
Foram várias e valiosas as ofertas deixadas pelo rei e pela rainha, sobretudo aos pobres da cidade.
Os arcos alegóricos, construídos em madeira, foram arrematados e vendidos após os festejos.
A estação da Guarda
«(…) via um terreno desolado onde as searas de centeio, frias e raras, pareciam cãs em crânio de velhos; via pastores, e rebanhos de ovelhas nos seus redis(…)».
Foi assim que Oliveira Martins sentiu a estação da Guarda, dez anos depois da sua inauguração.
Implantada em terrenos de João Marques, Balthazar Gonçalves, Maria Correia, Joaquim Pires e Manuel Moreira, com grande trânsito de passageiros e mercadorias, implicou uma logística e acessos próprios à cidade. Fora do âmbito deste artigo importa referir que as primeiras casas particulares começaram a ser construídas em 1882, destinavam-se a pensões, tabernas, lojas, armazéns e cavalariças. O maior dos edifícios pertencia a Bartholomeu de Aragão, grande proprietário local. O primeiro restaurante, “Chapau”, foi inaugurado em 1890. Tinha carreiras de diligências para a cidade e para Pinhel, destacando-se a Companhia de Viação da Guarda – Melo, Pessoa & Companhia, de que era sócio diretor António Balha e Melo.
* Investigador da história local e regional