Dia limpo e claro. O sol começa a inclinar. Curva, contracurva. Do lado direito rochas e morros, do lado esquerdo precipício, lá ao fundo o vale fundo e largo. Seia, o que deixámos, Vide, o que procuramos.
– Menina Isabel diga ao Sr. Dr. para vir devagar, devagar se tem mais que fazer, se quer fazer mais coisas,… sim… sim… deve ter mais coisas para fazer!
Ao chegar a Vide telefonem, eu e o meu menino vamos para o morro do Carvalhinho para nos verem. É difícil encontrar a nossa casa. Mas, quem quer saber da casa de uma velha e um menino doente mental! Mas venham, venham vindo, cá os espero neste cabo do mundo. Quando encontrarem a ponte romana, em Vide, liguem. Estamos à espera no morro, temos vagar.
Agora subam, subam 2.500 metros de caminho estreito, uma vereda, buracos, buracos e algum asfalto…
Serra acima, morro de um lado, barrancos do outro e medo dos dois.
Ao cimo, uma jovem de outros tempos, vestida de creme, calça preta e cabelos louros ao vento, apoia-se numa bengala. Ao seu lado direito o seu “menino”, com passos anárquicos em todas as direções, de cabeça enterrada no boné – mal vê o que não entende.
– Sempre chegaram! Que bom… Aqui não vemos ninguém… Sabe, Sr. Dr., vim para aqui porque o meu filho (64 anos) não se dava com o barulho, a gente, a civilização… não era respeitado na cidade.
As pessoas com pressa atropelam as outras, vão a olhar para o umbigo. Aqui está tranquilo (enquanto ele se deslocava de um lado para o outro, para a frente e para trás, passos frenéticos em todas as direções).
É um doce… Ajuda nas coisas simples… Estender a roupa… Sabe, Sr. Dr., já aqui estava em 2017! Vieram retirar-nos de casa pelas 3h da manhã. As janelas ficaram chamuscadas… Que faziam, que apoiavam… Olhe, deram um jeito no caminho para passar mais depressa. Assim nem olham.
Ver, nunca viram.
Lisboa é muito longe para não nos ouvirem… o mundo é perfeito.
Sabe, fui aos 18 anos para Moçambique, casei lá aos 19 anos. Não gostei de lá estar… de cada vez que via maltratar um negro não dormia. Passei muitas noites sem dormir.
Vim embora, pelos 20 e poucos, com este filho que o médico apelidou de deficiente ao nascer.
Cá estamos os dois. Só os dois e a serra. O mundo já não nos quer! Não falo pelo Dr., e pela menina, Deus nos livre!
Coma um dióspiro Dr., coma um dióspiro que aqui também há coisas boas!
Por aqui estarei enquanto tiver cabeça. Sabe, ainda está boa: isso lhe garanto eu. Noutro dia, ao descer a Vide, o carro rebentou os travões e a minha cabeça mandou-o contra o morro. Se fosse para o precipício, olhe, já nem falava. Olhe, hoje é o dia dos calados, dos mortos, pois claro. Olhe Dr., eu gosto muito de falar… Uma mãe tem muito que contar…
Até gostava que alguém contasse a minha vida.
A promessa
“Lisboa é muito longe para não nos ouvirem… o mundo é perfeito.”