O título é um isco. Agora que está a ler estas linhas, deixe-me explicar: não quero que o interior morra, quero que morra o conceito de interior.
Mas se não puder alcançar a pena capital, proponho, em alternativa, um período de pousio semântico. Um tempo de suspensão vocabular. Um jejum linguístico, até a carga negativa se dissipar. As palavras contam. O mundo sempre se submeteu à oficina da semântica.
Geograficamente, em Portugal o interior não existe. Num mundo de escalas globais não é possível encontrar no nosso velho mapa um ponto simultaneamente longe do mar e da fronteira. O que escrevo nem sequer é novidade. A pena de Eduardo Lourenço ensinou-nos algo semelhante há não muitos anos.
Na nossa nesga de território, medianamente infraestruturada, não temos espaço longitudinal para lonjuras. Um canadiano confundir-se-á se lhe dissermos que Vilar Formoso fica afastado da praia da Barra. Um brasileiro boceja a sério quando nos ouve queixar da distância ao aeroporto do Porto. E até um francês pode franzir o seu sobrolho europeu quando percebe que, mentalmente, ainda dividimos o nosso espaço este-oeste com uma simplista linha vertical. A Guarda, por exemplo, dista pouco mais que o intervalo de um jogo de futebol de um país que é das maiores potências culturais do mundo. E está a uma aula de Matemática do Atlântico intercontinental. Penso que este ponto fica provado.
Como país não temos oposição litoral-interior. Temos complementaridade costa-raia. A raia é da costa e a costa é da raia. Há nove séculos.
À questão da proximidade física acresce, mais recente, a do digital. Cada vez mais o mundo é uma única e grande cidade, interligada e interdependente. Se, vivendo numa vila da Serra da Estrela, posso fazer compras numa livraria de Londres digitando um código, ou ser burlado em segundos por um “hacker” de outro continente só porque cliquei no “link” errado, alguém ainda duvida que somos todos vizinhos?
Quer isto dizer que a nossa região não enfrenta problemas e desafios? Pelo contrário. Os problemas são reais: declínio demográfico, solidão de idosos, inexistência de transportes públicos, abandono de recursos naturais, falta de médicos, pobreza energética, vulnerabilidade aos incêndios… (já agora, qual é a parte desta enumeração que não se aplica também a muitos dos concelhos que consideramos “do litoral”?). Sim, temos todos esses problemas! E sim, eles exigem a nossa mobilização coletiva. Mas não, não vivemos no interior! Vivemos num território com problemas e desafios próprios. É só isso.
Regressemos à minha moção e concretizemo-la: pelo período de cinquenta anos, arrume-se a palavra “interior” numa gaveta da cómoda. Varra-se da linguagem das empresas e instituições. Apague-se das conversas de café. Use-se o vocábulo só para falar de psicologia e de arquitetura (ou deste jornal, que desde a sua génese tem combatido a interioridade, informando-nos). Imaginemo-nos simplesmente num ponto do planeta, como qualquer outro. Abandonemos a masmorra. Matemos o fantasma. Expurguemos o complexo. As revoluções começam nas palavras.
Eu, por mim, já decidi. Continuando a morar onde moro, não vou mais viver no interior. Havemos de ser mais eu bem sei.
N.R.: Daniel Joana inicia nesta edição uma colaboração mensal com O INTERIOR. Natural de Trancoso, tem 39 anos e é professor, sendo atualmente diretor executivo da Escola Profissional de Trancoso. Doutorado em Literatura de Língua Portuguesa, publicou os livros “Uma Costela da Beira Alta” (2012), “Desassossego de Ensinar” (2016) e “Poemas para ver e voltar” (2021). É membro da Assembleia Municipal de Trancoso eleito pelo PS.