Cara a Cara

«Nestes 25 anos criei muita música nos mais variados contextos e, por incrível que pareça, nunca tive uma crítica negativa»

Kubik (3)
Escrito por Sofia Pereira

P – “Circus Mundi Decadens” é o quinto disco de Kubik. Que música é esta? O que muda relativamente aos trabalhos anteriores?
P – É um disco mais concetual, na forma e no conteúdo. Na forma, porque apesar de musicalmente manter a identidade estética de fusão habitual, arrisca novas sonoridades nunca antes exploradas (como o flamenco ou a música indiana). E acentua uma matriz do burlesco, com pelo menos 5 faixas do álbum remetendo para esta expressão artística que se baseia numa fusão de estilos para criar um efeito inesperado ou irónico. A música burlesca, de fanfarra e circense, é teatral e extravagante, evocando atmosferas de cabaré, circo ou vaudeville. E logo no videoclip promocional evoco este universo que sempre me fascinou num tema com acordeão, ritmos marcantes e arranjos que lembram fanfarras ou bandas circenses com batidas eletrónicas à mistura. Considero que é também o meu disco de cariz mais imagético, no sentido em que cada faixa é uma viagem sonora para paisagens cinematográficas imaginárias. No conteúdo, este novo álbum remete, tal como o título sugere, para a ideia iminente do fim da civilização ou, pelo menos, para uma sociedade caótica, decadente e desumanizada.

P – O que o inspirou neste trabalho? 
R – Como já referi, em grande medida, foi o universo da estética burlesca, pelo lado do exagero e caricatura, do humor negro, da relação do cómico com o trágico, da sátira social, da subversão dos géneros, etc. Neste sentido, inspirei-me para compor parte do álbum em duas obras-primas deste género: “A História do Soldado”, de Igor Stravinsky (1918), e “A Ópera dos Três Vinténs”, (1928) de Kurt Weill/Brecht. E ainda na música para cinema de compositores como Nino Rota (Fellini), Danny Elfman (Tim Burton), Henry Mancini, Lalo Schifrin, Ennio Morricone, Yann Tiersen, Philip Glass, entre muitos outros. A música para cinema sempre foi uma profunda influência para Kubik. Mas este disco não reflete apenas estas influências, também explora o jazz, vários géneros de músicas urbanas como a eletrónica e o hip hop, a clássica, o rock e múltiplas sonoridades da chamada World Music, numa teia musical caleidoscópica e de constantes e improváveis metamorfoses. É esta a matriz artística de Kubik, como disse um crítico recentemente: «Kubik – fusão distópica tornada real».

P – É um trabalho com um cariz de crítica social e política muito forte. Kubik é hoje um músico descrente e desiludido com o mundo? 
R – Infelizmente, só posso concordar. Por isso utilizo a imagem do circo e do clown para representar esta metáfora: o circo, historicamente um símbolo de diversão, evasão, fantasia e entretenimento, representa o mundo como um palco onde a vida se desenrola com todos os seus excessos, dramas e absurdos (como no filme “La Strada”, de Fellini, que cito no disco). Neste novo trabalho de Kubik, este circo representa alegoricamente o estado do mundo, e é retratado num estado de ruína, podridão e desordem, revelando ser um reflexo de uma sociedade à beira do colapso, onde o caos substituiu a ordem e a loucura tomou o lugar da razão. Como na sociedade em geral, também o circo esconde a tragédia, o sofrimento e o drama. A música circense e de fanfarra, que evoca sentimentos de alegria e festividade, quando associada a uma estética decadentista, cria um contraste impactante que sublinha a ideia de vulnerabilidade e perigo à beira do abismo (como está representado na capa do álbum). Todos os títulos das faixas são denunciadores do estado de declínio da sociedade e dos seus valores. E sim, sinto que o mundo está a passos do seu estertor final até à inevitável aniquilação (pelos mais variados motivos), sentimento que está bem presente no tema que fecha o álbum com o sintomático título “Marcha dos Mortos”. Em suma, este álbum é uma forma de manifestar e exorcizar a minha profunda inquietação pelo estado calamitoso do mundo à escala global através da música, mas do ponto de vista irónico e cáustico. É muito simbólica a capa do disco: um palhaço a tocar flauta numa banheira à beira do precipício…

P – Chega aos 25 anos de carreira, qual é o balanço deste percurso?
R – Como não sou profissional da música, costumo dizer que não tenho propriamente uma “carreira” no sentido pleno do conceito, mas antes um “percurso artístico”. E sob este prisma, o balanço é bastante positivo. Ao longo destes 25 anos criei muita música nos mais variados contextos e, apesar do caráter experimental e desafiador da música de Kubik (e por não ser comercial), por incrível que pareça nunca tive uma crítica negativa por parte da comunicação social ou do público. Pelo contrário, a recetividade aos meus trabalhos tem sido sempre muito positiva e lisonjeadora. Por isso, sinto-me muito feliz por este reconhecimento.

P – O que ficou por fazer nestes 25 anos?
R – Bom, talvez mais colaborações com outros músicos (fiz algumas, mas não todas as que gostaria). Eventualmente, mais regularidade de projetos, concertos e edições, porque estive praticamente 8 anos parado desde o meu último disco. Mas não sinto que tenha havido algo verdadeiramente “por fazer” neste quarto de século de atividade.

P – Que projetos tem para o futuro?
R – Como não sou músico profissional, não estou pressionado a pensar e executar projetos sob pressão do mercado, de editoras ou da indústria. Como Kubik é um projeto de um só homem, tenho mais facilidade em gerir os timings e as decisões. E por isso sinto-me muito satisfeito por ter total liberdade de ação para criar música como e quando posso e quero. Este estatuto oferece-me muita tranquilidade para gerir o meu trabalho conforme as circunstâncias. Por isso não tenho “projetos para o futuro”. De resto, quando editei o álbum “Rock Extravaganza” em 2016, disse a muitos amigos que seria o último de Kubik. E, no entanto, em 2024, lanço um novo trabalho sem ter feito planos elaborados para isso. Em suma, faço minhas as palavras de Albert Einstein: «Não penso nunca no futuro, ele chega rápido demais».

___________________________________________________________________

VICTOR AFONSO/ KUBIK

Músico

Idade: 55 anos

Profissão: Professor de Educação Musical/Técnico Superior de Cultura da Câmara da Guarda

Currículo (resumido): Licenciado em Educação Musical e foi professor de Música entre 1995 e 2000; Entre 2000 e 2005 foi o Coordenador da Mediateca VIII Centenário e a partir de 2005 assumiu o Serviço Educativo do TMG, tendo sido também programador cultural durante 9 anos. Kubik é o seu alter-ego artístico desde 1998; compôs dezenas de bandas sonoras originais para teatro, cinema mudo, dança e performance. Editou 4 álbuns, atuou ao vivo pelo país e ganhou vários prémios e distinções pela sua criatividade musical

Livro preferido: “A Morte de Ivan Ilitch”, de Lev Tolstói

Filme preferido: “Stalker”, de Andrei Tarkovsky

Hobbies: Ler, escrever, ver cinema, ouvir música, caminhada, BTT

Sobre o autor

Sofia Pereira

Leave a Reply