Faca

Escrito por Diogo Cabrita

“O livro tem o dom de nos fazer passar pelos pensamentos da vítima do crime, os olhos assustados de quem é barbaramente agredido e se martiriza por não se ter sabido defender até às sequelas da violência.”

Não é um romance. Não é uma ficção, embora se construa fantasia e confabulação dentro dele. O último livro de Salman Rushdie constrói-se sobre o episódio brutal de 12 de agosto de 2022, em que um cretino, de quem não interessa saber o nome, lhe desfere 15 facadas. O tema vai como uma luva após o atentado a Donald Trump, recorda as facadas em Bolsonaro, no primeiro-ministro do Japão Fumio Kishida e de Robert Fico, da Eslováquia.
O escritor deslocou-se a Chautauqua, junto ao lago do mesmo nome, e é lá que o ataque acontece, filmado e divulgado pelo mundo, como sabemos. Curiosidade é Chautauqua ser uma palavra da língua do povo Erie que está extinto e, portanto, guardando os segredos dos seus significados linguísticos.
Rushdie evita a revolta, evita a raiva sobre o agressor e foge do estereótipo da vítima revoltada, incompreendida, traumatizada. Ele quer o regresso da sua vida anterior.
Ele usa o livro para falar do amor por Rachel Eliza Griffiths, de quem se apaixonou em 2017. Ele exalta a força dos que estiveram na sua proximidade, que o salvaram da facada fatal e os que o reabilitaram. É um livro onde, nalguns capítulos, o doente transmite suas queixas, diaboliza os serviços, deixa alfinetadas cruas ao ambiente hospitalar e, por vezes, solta elogios importantes aos que lhe deram uma nova oportunidade. Rushdie é um anticlerical, um ateu convicto e deixa claro que as religiões, na sua ideia, foram sendo todas perniciosas à evolução do pensamento livre dos humanos. As religiões, sem exceção, ao evangelizar tentam induzir seus limites. «Até aqui tudo, depois deste ponto nunca».
Rushdie demonstra assim a sua coragem, a força da sua convicção. Está no clube tétrico dos escritores agredidos por cretinos. Beckett em 1938, quando um proxeneta o apunhala por lhe recusar uma esmola. Naguib Mahfouz, um egípcio, que foi Nobel da Literatura e foi esfaqueado em 1994 às mãos de assassinos de ideias e da liberdade, mas sobreviveu.
O livro tem o dom de nos fazer passar pelos pensamentos da vítima do crime, os olhos assustados de quem é barbaramente agredido e se martiriza por não se ter sabido defender até às sequelas da violência. Mas Salman Rushdie não envereda pela culpabilização do agressor, nem a exigência das penas. Desfila no livro as suas preferências musicais, as suas influências culturais e percebemos como é um homem cimentado de literatura, de saberes vários, de entrosamento de vivências asiáticas e europeias. Conviveu com Milan Kundera, Paul Auster, Gunther Grass e tudo isso só pode construir uma sopa pungente e interessante. Vou ler mais coisas dele.

Sobre o autor

Diogo Cabrita

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