Gosta de se deitar de barriga para baixo com os pés no ar. As botas pretas de atacadores rafados a lembrar uma menina irrequieta. Quem a observe de longe, os pés a abanar e o mar ao fundo, não a reconhecerá. Um chapéu de palha com abas largas esconde-lhe o rosto. Os braços estendidos ao longo do corpo. Fica nessa posição o tempo que sente ser necessário para desocupar a cabeça de tudo o que a atormenta. Então imagina. Que uma espécie de cerca se ergue à sua volta e, dentro, uma árvore cresce repentinamente. O tronco adensa-se e, sem se mover, sobe aos ramos e constrói uma casa. Sobe destemida. Observa, ao redor, a terra árida a estalar. Talvez ali tivesse existido o leito de um rio. Um telefone preto como as botas que calça desperta-lhe a atenção. Não percebe o que fará ali no meio do nada um telefone. Só então vai movimentando cada pedaço do corpo.
Repara não haver vestígios de qualquer cerca. Ergue-se e descobrimos-lhe os cabelos louros e compridos num rosto de inocente beleza. Veste-se com uma camisa branca que deixa antever as suaves linhas do corpo. As botas sobressaem na pele clara, quase transparente, das pernas. Tem pureza no olhar. Numa clareira de água com pequenas folhas no fundo molha os dedos. Leva-os aos lábios como se de repente fosse assaltada por uma ligeira febre. Vem-lhe à memória aquele mergulho que um dia há-de fazer no mar assim vestida. Vê-se a afundar. À medida que contém a respiração a camisa transforma-se numa espécie de véu que a vai abandonando. Debaixo de água os pensamentos tornam-se mais claros.
É frequente aquela visão de um búzio no parapeito da janela. Tem cor de marfim e a imagem dança-lhe nos olhos. Vai e vem. Acompanha a brisa a ondular a claridade das cortinas. Ao fundo outra janela. Um rectângulo de caixilhos castanhos que a fazem desviar o olhar. Desconhece o que atrás dela possa existir. Um calafrio percorre-a como um raio. Receia a terra gretada. O abandono. A boca onde a água secou. As palavras apenas balbuciadas, sem som algum. Ainda se um eco fosse possível. Que repetisse até ao infinito tudo o que nunca fora capaz de dizer.
Flocos de neve ou raríssimas aves chamam por ela. Acenam-lhe. Crê que lhe indicam um caminho. Segue sem nada temer. Detém-se entre ervas altas. Liberta as mãos para sentir o vento que as faz deslocar. As mãos sempre foram lugar de sentires. Um dia afirmou que conseguia tocar na música. Ninguém a levou a sério. Todos riram dos seus devaneios. Não mais falaria das suas sinestesias quando a lua gelada lhe toca a língua ou as cores de uma tela se lhe misturam na boca.
Uma montanha nua surge imensa à sua frente. Tem que se afastar daquele sufoco. Ergue as mãos e o céu enche-se de papagaios de papel amarelos. Agarra-se com força a um deles até pousar numa rocha. Uma passadeira vermelha estende-se até ao mar. Percorre-a nas suas botas pretas. Assobia e dança. É uma ave por instantes. Joaninhas vêm procurar-lhe o braço esvoaçando de seguida.
O horizonte oscila e espelhos gigantes levantam-se sobre a areia. Traz o búzio na mão. Corre para o mar e num gesto rápido oferece as suas cinzas à primeira onda. Já dentro de água, onde os pensamentos sempre foram mais claros, recorda aquela frase que um dia lera de Clarice Lispector – “Ela e o mar. Só poderia haver um encontro dos seus mistérios se um se entregasse ao outro.”
P.S. A vida é feita de ciclos. Uns terminam para dar lugar a outros. Creio que durante estes últimos seis anos cumpri um dos ciclos bonitos da minha vida – o desafio que o Luís Batista Martins me propôs ao convidar-me para escrever no Jornal O Interior. A ele e aos leitores estarei eternamente grata. Parece-me, no entanto, que está na altura de abrir janelas a outros. Talvez tragam ar mais fresco. Acredito que sim. Vou continuar a acompanhar O Interior e, quem sabe, de vez em quando não escreva sobre algo mais útil que a inutilidade das coisas. Muito obrigada a todos!
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia