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“O artista dava vida a um boneco, como se fora o seu inconsciente a falar, com voz de falsete. O dummy não era um alterego do ventríloquo, mas o seu id, cuja linguagem torrencial a custo conseguia refrear, soltando as gargalhadas do público. “

1.A conflitualidade social é a pedra de toque da democracia. O seu teste do algodão. Mas se o confronto é inevitável, o caudal de reivindicações, os seus autores, o tipo de respostas do poder, tudo isso gera algo que é possível mapear. De um modo geral, um movimento social de contestação busca sentido e identidade na sua mobilização. E busca eficácia, através do repertório de modelos de acção que utiliza. Que umas vezes tende para os modelos já testados e outras para a inovação. Muitas vezes, cai-se num impasse táctico, terreno fértil para a violência. Noutros casos, certo modelo de repertório transita entre confrontos de natureza contígua. Muitas vezes, essa identidade já existe. Noutros casos, resulta de uma construção. E os processos de confronto passam sempre por ciclos. Com picos de intensidade e mobilização. Há casos em que, embora havendo uma reivindicação comum, os vários actores que a corporizam entram numa relação de competição, pouco ou nada colaborativa.
2. De entre os diversos tipos de comediantes, há um que parece ser o parente pobre: o ventríloquo. Tiveram certamente a sua época gloriosa. No Natal dos hospitais, ou em clubes nocturnos, ou espectáculos de rua, faziam as despesas da festa. O seu duplo, ou funcionava como uma consciência portátil, ou, na maioria dos casos, como a voz da inocência inconveniente, da malícia desbragada, ligeiramente pícara. O artista dava vida a um boneco, como se fora o seu inconsciente a falar, com voz de falsete. O dummy não era um alterego do ventríloquo, mas o seu id, cuja linguagem torrencial a custo conseguia refrear, soltando as gargalhadas do público. O “diálogo” do ventríloquo, em rigor, é um monólogo desdobrado. Que reproduz, em tom de comédia, a constante interacção, em cada um de nós, entre as pulsões do inconsciente e as regras da consciência moral. Infelizmente, os ventríloquos passaram de moda. Quiçá associados a uma certa decadência. Ou tidos como demasiado estilizados. Ou substituídos, com êxito, pelos políticos…
3. Hollywood tem uma série de clichés, desenvolvidos durante a vigência do Código Hays, entre 1930 e 1968 (basicamente, um conjunto de interdições de carácter moral), mas não só, e que subsistem, em grande medida, até hoje. Alguns exemplos: o polícia insubordinado, cujo protótipo é Dirty Harry, personificado por Clint Eastwood; a rapariga final (nos filmes de terror); o gato a sair de um armário e o vilão reflectido no espelho da casa de banho (nos triller); a rapariga a fugir de monstros em saltos altos; o negro mágico; o engasganço com um líquido; a morte quase certa de gays ou lésbicas; o anúncio do final da carreira (policiais), ou a amostragem da fotografia da amada (guerra), como prenúncio da morte eminente; o vilão sofisticado, com sotaque britânico, ou o super vilão com uma cicatriz; a corrida final do apaixonado atrás da moça, quando esta vai a caminho do aeroporto (nos melodramas); a vista da torre Eiffel da janela, sempre que há uma sequência em Paris, ou do Big Bem, em Londres; o latino toureiro, ou narcotraficante, ou ‘bandido’ mexicano, sempre embriagado e venal; a perseguição automóvel; os cowboys a comerem feijão e beberem um café intragável, à volta da fogueira; as lutas corpo a corpo, em que os maus, um a um, esperam pela sua vez para ser mandados ao tapete; os alemães de capacete ou uniforme das SS, com cara de maus, a dizerem ‘schnell’ , ‘feuer’, ‘jawohl’, dizimafas como todos pelos ‘bons’; o grito de terror normalizado, etc. Mas há um cliché menos recorrente, não obstante infalível. Os europeus de Leste, maxime dos países da ex URSS, são retratados, ou como vilões agrupados em milícias que ameaçam o Ocidente com bombas sujas, ou como corruptos mafiosos, ou como populações indefesas. Em comum, são pouco sofisticados, vestem horrivelmente, habitam em prédios medonhos, e usam tecnologia obsoleta. Compreende-se perfeitamente que os ucranianos se tenham querido descartar deste estereótipo.

*No calendário vegetal celta, designa o pilriteiro

Sobre o autor

António Godinho Gil

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