Quem passeie por Londres e queira uma refeição rápida tem à disposição em cada esquina tendas de “fish and chips”, com ou sem molho, uma aberrante combinação de peixe frito com batatas fritas que faz as delicias dos ingleses e nos faz a nós franzir o sobrolho. E com toda a razão do Mundo. É que o “fish” que acompanha as batatas fritas dos ingleses é o “nosso” bacalhau. Qual “mapa cor-de-rosa”, qual carapuça! Aqui temos o verdadeiro conflito do século XXI, a disputar entre portugueses e ingleses, entre o bacalhau fresco frito e o bacalhau seco e salgado, feito de mil e uma deliciosas maneiras. Bendito Ricardo, no Euro 2004; abençoado Ricardo, no Mundial de 2006. Nunca serão demasiadas as humilhações que possamos infligir à pérfida Albion. Nunca, enquanto houver um bacalhau nos mares do Norte e subsistir a recordação da meia-final de 1966.
O problema é que a espécie está em vias de extinção. O nosso apetite não diminui, nem o dos ingleses. Todos os anos ouvimos os avisos: a pesca de bacalhau está a dizimar a espécie a um ritmo superior à da sua capacidade de regeneração. A solução foi adiantada há uns anos atrás e passava por uma autêntica heresia: começar a criá-lo em aquicultura. Dizia-se que era impossível, que o peixe necessitava de viver em liberdade nas águas frias e revoltas do Atlântico, mas eram simples opiniões, daquelas que o tempo se encarrega de reduzir a pedaços. E foi assim que, na semana passada comprei bacalhau fresco, criado na Noruega em aquicultura. Caíram de uma vez tanto as minhas ilusões (o peixe era um refúgio saudável da actual alimentação, porque livre das manipulações da indústria) como os meus temores (dentro de uns anos vamos estar a cozinhar sucedâneos de bacalhau à Gomes de Sá ou à Lagareiro).
Este é apenas o momento em que tomamos nota do problema. A verdade é que o bacalhau do nosso tempo não é tão bom como o de há vinte anos. Dirão que é o mesmo com tudo o resto, ao menos os saudosistas reincidentes (e enganados, que hoje é quase tudo melhor do que era há vinte anos – salvo mesmo o fiel amigo), mas há razões. Antigamente, no tempo dos bacalhoeiros, a viagem de regresso a Portugal demorava meses. Não havia câmaras frigoríficas e a única forma de conservar o peixe era com a sua salga, tão prolongada quanta a duração da viagem de regresso, em regra vários meses, e quanto maior o tempo de salga, melhor. Hoje não, o peixe vem congelado e é curado em poucas semanas, em túneis de vento e com uma salga rápida. Amanhã vai ser com peixes criados em viveiro. O resultado final pouco tem a ver com o de antigamente, mas não tardará o tempo em que ninguém saberá distinguir a diferença.
Feliz Natal
Sugestões:
Um livro: O Terrorista, de John Updike (Civilização Editora, 2006). A génese de um terrorista e a conclusão de que as nossas boas intenções ocidentais não só não resolvem nada como não se aproximam sequer do problema.
Uma pergunta: “Romeiro, Romeiro, quem és tu?” – e responde o concorrente do “Um Contra Todos”, totalmente às cegas: “Frei Luís de Sousa”.
Uma receita: Bacalhau à Gomes de Sá – provavelmente a melhor contribuição portuguesa para a gastronomia mundial.
Por: António Ferreira