Todos guardamos no bolso algum tipo de prova de que, ao longo dos tempos, nossos e do resto da humanidade, a preguiça tem sido subvalorizada. Mal acabados de nascer, tardando em quedar sentados, firmes de músculos e pescoço hirto, levamos logo com um crítico “seu preguiçoso, sente-se lá”, capaz de, mesmo sem ainda conhecermos o significado de tamanha verborreia, nos deixar acabrunhados. Claro que não perdemos pela demora e assim que ousamos balbuciar um “baaa” para referir o que quer que seja, já estamos a levar com outro “ai, essa preguiça, diga lá á-gu-aaa”. Mas como uma criança também não é de ferro, para passar a vida de cabeça baixa, não admira que desde cedo caiamos na tentação de, à primeira oportunidade, sobrepormos a nossa faceta mais censurável às pretensões alheias de nos fazer esquecer a preguiça e vivamos para lhes agradar. Vá brincar, estudar, lavar as mãos, venha almoçar, arrumar o quarto. Não. Deu-me a preguiça. Até que um dia, sem sequer percebermos, acabamos tão letárgicos que já ninguém dá por nós a não ser para nos inundar de desdém. Expurgam-nos da preguiça, forçando-nos a ser preguiçosos.
Se assim não fosse, teimosia, a nossa, contra teimosia, a deles, muitas coisas nos poderiam ter acontecido. Umas melhores, outras menos boas, mas todas elas seriam, de certeza, uma canseira pegada. Imagine-se a canseira que não seria darmo-nos ao trabalho de ler, ouvir, observar, os outros, o que os outros fazem, tudo sem qualquer ponta de preguiça. Aposto que ainda éramos capazes de reparar que a Terra é um globo, o céu é azul e que a Sé da Guarda, além de velha de séculos, só abre para a missa. Quem diz a Sé fechada, diz a Torre de Menagem e a dos Ferreiros. Aqui pelo burgo, aberto a visitas e deambulações só está o que a própria natureza não permitir fechar. De resto, tudo fechado. Quando não o está em permanência, está-o temporariamente. Caso para perguntar: se não fosse pela preguiça, militante e permanente, a que nos forçam o que não seria desta nossa cidade? Já os turistas transbordavam para os arrabaldes e os residentes para os vales à volta, era o que era. Aliás, deixássemo-nos nós de teimar em ser o contrário do que querem que sejamos que até esta nossa característica já teríamos rentabilizado: conheça a cidade dos preguiçosos que só o são para contrariar os que querem que o deixem de ser. Éramos bem capazes de desaparecer mais depressa do que o que nos está destinado, no entanto, também poderia suceder o inverso.
Imagine-se o que não seria se nos deixássemos cá de oposições gratuitas e começássemos a fazer o que nos pedem? Talvez alguns de nós começassem a abrir coisas e os forasteiros dessem em não nos querer largar a porta abrindo outros horizontes. Provavelmente. Só que o simples exercício de imaginar, sendo quase tão difícil como o de nos mantermos sentados ao meio ano de idade, por uma razão ou por outra, acaba sempre a divergir para esta nossa preguiça. A tal que desde sempre, talvez por preguiça, talvez por não sabermos o que fazer com ela, temos carregado nos bolsos. O que também não deixa de ser bom, porque ser preguiçoso parece que, para alguns, de algum modo, começa a ser virtude. Seria até fácil descobrir porquê, mas esta nossa preguiça, esta nossa compulsão para nos opormos às solicitações do outro e da realidade, a julgar pelos eventos aqui programados e aplaudidos, tão cedo, também não nos deixará.
Coisas da psicologia invertida ou da vã glória de a nada ligar?
“Mas como uma criança também não é de ferro, para passar a vida de cabeça baixa, não admira que desde cedo caiamos na tentação de, à primeira oportunidade, sobrepormos a nossa faceta mais censurável às pretensões alheias de nos fazer esquecer a preguiça e vivamos para lhes agradar.”