Há mistérios que nos atraem, como os olhos de mulher por detrás de um véu. Há um destes na cidade, no sopé da sua encosta mais fria. Encobre-o um manto negro. De fora, apenas se vê o descuido de alguns vincos. Por vezes, percebe-se o movimento desconjuntado dos seus membros. Sabe-se que a mulher que o veste é forçada a usar burka, mas não se imagina porquê. Se está triste, ou desesperada, se tem medo ou se gosta de como vive, disso… nada, ou quase nada, transparece. Cá fora, à sua frente, vai um marido confortado por já a possuir e um ou outro pretendentes, sedentos dela e de se apossarem do lugar de chefe da casa. O que sente, como se sente, não lhe é dado dizer.
Conheço bem esta mulher da burka. Fala-me quase todos os dias. E, porque assim mo exige, eu pouco ou nada posso revelar. Claro que ela não pode contar cá fora que nem o marido nem os pretendentes estão à altura de a fazerem feliz. O marido não lhe dá filhos, pretende que tudo vai bem e assume que tem o direito de a usufruir mesmo sabendo que não gera nada de novo – mantém-lhe a casa. Os pretendentes entram em rixas constantes, até mesmo com o marido, aproveitando qualquer ensejo para brandirem o espadachim, no desejo mórbido de a conquistarem… de a terem só para eles e de serem eles a manter a casa.
Ora, muito em segredo, ela confessou-me que é maltratada, escrava de poderes discricionários. O seu diário conta histórias de abuso… Disse-me que, se eu lesse com atenção, perceberia. Li uma página e foi o suficiente: ela vive num harém onde, concubinas e castrati, por inveja e descomando, a forçam a comer com os pés e a andar com as mãos no chão. Se a deixam pensar, porque não o podem impedir, desprezam os seus juízos… e prosseguem com o que muito bem lhes dá na gana. A inversão, por andar com o corpo ao contrário, provoca-lhe, não raro, congestões cerebrais.
Enquanto dorme, vários a têm tentado engravidar. Esquecem-se, porém, que ela é obrigada a viver com as pernas para cima e as mãos para baixo e que, por andar com os membros ao contrário, tudo o que poderia gerar… aborta.
Cá fora, contudo, ninguém sabe disto. Na rua nada transpira: ela até parece andar sempre com a cabeça no lugar, muito composta, ao sabor do destino da pequena comunidade em que vive.
É uma metáfora extensiva. Com um final moralizador talvez fosse uma parábola.
Este tratamento de um corpo em que os braços e as pernas se misturam faz lembrar Picasso e Guernica. Com o bombardeamento da aldeia basca pelos nazis, toda a população morreu. O sofrimento de quem lá vivia, durante a Guerra Civil Espanhola, mal pode ser imaginado. A libertação do fascismo, da tirania, serviu de conforto a outros – mas não aos que lá pereceram.
É uma imagem. É um final assustador.
Para arranjar outro fim, também em cores cinzentas, serviria recordar o mito de Eco e de Narciso. O fim de Narciso, reduzido à condição de flor à beira da água, em perpétuo embevecimento com a sua própria imagem, não pode deixar esquecer a voz que o tentava ligar ao mundo, à lei da sociedade em redor, a voz de quem o amava e que, por ser desprezada, se transformou em mero eco…, eco…, eco…
Mas também se pode dar um fim levezinho, à laia de telenovela, ou quase brejeiro, à maneira da revista, e dizer: “É só vir um vento suão ou, em último recurso, um vento setentrião e, tal como à Marilyn, levantar a saia da burka – desfaz-se logo o mistério do contorcionismo. Afinal um circo é que ele era…”
É que entre estar a ver uma tragédia ou uma comédia é uma questão de ponto de vista – ou da disposição com que se começa o dia.
Por: Luísa Queiroz de Campos