A Soul Jazz, famosa loja de discos Londrina e também editora, tem vindo a reconstruir pedacinhos da história da música popular, numa perspectiva abrangente no plano geográfico – o caso das cidades de Londres, Nova Iorque e Kingston -, mas global na área musical – soul, jazz, funk, new wave, no wave. Chegou agora a altura de, numa certa forma, fechar um ciclo. A colectânea “A Tom Moulton Mix”, encerra um capítulo iniciado há quase meio-século pelos mestres jamaicanos, e absorvido, uma vez estudado, por alguém que os conhecia, tinha relações de amizade com um deles, o mítico Clement Dodd, e viu num processo de reorganização sonora, uma afirmação musical para um acto de liberdade, que de grito em surdina até pleno de direitos, foi surgindo em Nova Iorque nos anos 70.
Há pouco mais de trinta anos, as comunidades “gay” procuravam viver o seu amor à vida, mas as leis eram restritas, e mesmo no Estado de Nova Iorque, em recintos fechados, por cada dois homens, teria de haver uma mulher. Nos embrionários clubes, os “gays” tinham de chegar sempre com uma amiga, para assim despistarem as autoridades, podendo finalmente sentirem-se livres nas então nascentes discotecas. E a música era o catalisador para a libertação dos sentimentos obrigatoriamente reprimidos. Mas não só. O contexto histórico geral com a depressão do pós-Vietename levava as pessoas a uma introspecção que se fazia através da dança. E é aqui que nasce a importância de gente como Tom Moulton.
Como se escreveu, os clubes eram embrionários, mas o bom gosto dos Dj’s e audiência imperava para a felicidade despontar, então a música cuidadosamente escolhida, embora maioritariamente soul, era a força motriz para se atingir a alegria. Contudo, os “singles” geralmente só têm canções de 3 minutos, mas para manter o climax, ou se passavam as versões dos álbuns, ou então duas cópias da mesma música. Ainda se tentou chegar aos 5min.33s., mas não era ainda o suficiente. Por vezes, usavam-se também discos alusivos a efeitos sonoros, conseguindo-se o nível de entusiasmo latente até à próxima música. Até que um dia, por obra do acaso (à semelhança do dub que também nasceu como um azar de estúdio), chegou-se ao tão afamado 12″ a 45rpm. Estava encontrado o meio para permitir que uma canção se fizesse dançar quase eternamente. O disco, substituindo as orquestras, tonou-se ele próprio etiqueta de uma estética tradutora de um soul orquestrado, bem cantado e com uma síncope mais linearizada, não tão acentuado quanto o funk.
Tom Moulton, um branco, apaixonado pela música, especialmente negra, com uma exigência fora do comum relacionada com a qualidade do som e um sonhador, pois procurava a utopia da canção eterna, agarrou nas canções que gostava, e conferiu-lhes um estatuto de pequenas metragens maravilhosas, onde à qualidade intrínseca da música, se juntava a possibilidade, quase imperiosa, de a dançar. Contudo, ao contrário dos mestres jamaicanos, com quem “estudou”, em vez da desconstrução gravitacional do dub- os elementos sonoros gravitam em trajectórias diferentes à volta do núcleo rítmico baixo-bateria -, Tom Moulton remistura com a intenção de proceder a um rearranjo orquestral, ou quase como no jazz, os instrumentos saem e entram conforme o “timing” necessário à improvisação. É delicioso! Este álbum, além do indiscutível valor histórico, é acima de tudo a demonstração de um acto visionário, hoje tão em voga, que todos os aprendizes ou amantes da música de dança deverão ter como manual obrigatório.
Por: Paulo Sebastião