Voltar à aventura de pensar Eduardo Lourenço

“Expoente maior da cultura e do pensamento ibérico, ele foi «o gigante que nos desvendou Pessoa, Portugal e a Europa»”

«Eu só tenho um espaço particular, reservado, que é o da minha aldeia. Da minha aldeia e desses dez anos que aí vivi e foram diferentes de tudo o resto que me aconteceu. Estava no mundo ou o mundo estava em mim. Depois, nunca mais soube, realmente, onde estou e nunca o saberei». As palavras de Eduardo Lourenço, inscritas no memorial da autoria de Leonel Moura inaugurado em 2011, em São Pedro do Rio Seco, a sua terra natal, são uma das reflexões que encontramos naquele “piccolo mondo antico” nas origens do maior pensador português. Voltar à aldeia do concelho de Almeida é regressar ao centro do mundo de Eduardo Lourenço, é estar no «navio encalhado na meseta hispânica» e é sentir a ideia da Ibéria sem fronteiras, o sonho do iberismo, ali onde o «pequeno reino lusitano» se encontra «com a imensa Espanha», como tão bem resumiu Andreia Marques Pereira no “Fugas” (“Público” de 4 de março de 2023).
No ano do centenário de Eduardo Lourenço voltamos a publicar nesta edição uma das entrevistas que fizemos ao filósofo e ensaísta, um dos maiores portugueses do nosso tempo. E, como homenagem, iremos publicar nas próximas semanas uma seleção de crónicas que o professor escreveu entre 2000 e 2005, período de tempo em que foi colaborador regular deste jornal. Recordando, há 23 anos, nos primeiros anos de O INTERIOR, telefonávamos a Eduardo Lourenço (que residia em Vence, França) que nos ditava a sua crónica mensal, que redigíamos e lhe enviávamos por fax para correção…
Então, «o oráculo de serviço da portugalidade», como escreveu Luís Miguel Queirós, ainda não era popularmente reconhecido, e menos ainda na Guarda, que depois o adotou como patrono das letras e da cultura e agora homenageia – o nosso Eduardo Lourenço, nosso de São Pedro de Rio Seco e da Guarda; nosso porque guiados pela sua mão, pelas páginas luminosas que escreveu, a literatura e a cultura que nós somos, aprendemos com ele. Foi precisamente há 23 anos, no final das comemorações do Oitavo Centenário da atribuição do foral à Guarda, que Eduardo Lourenço foi aclamado pela sua dissertação na sessão solene do Dia da Cidade, quando o filósofo refletiu sobre a Civilização Ibérica e sugeriu que «a nossa capital ousasse e imaginasse» num «diálogo necessário à nova Ibéria». O próprio Eduardo Lourenço consentiu que «parecerá um sonho excessivo para uma altiva cidade de província,» mas «só o que faz sonhar merece que se aposte nele». A capitalidade cultural e a Guarda como centro de diálogo ibérico sonhado por Eduardo Lourenço é uma construção que não pode parar e deverá ser retomada como um dos caminhos determinantes para o futuro da cidade, da região e da portugalidade.
Na entrevista que republicamos nesta edição de O INTERIOR, feita em 2011, no contexto da homenagem que então lhe foi feita em São Pedro de Rio Seco, «uma aldeia fantasma», ficámos a conhecer melhor o homem, para além do filósofo e ensaísta. Mais do que uma entrevista, foi uma conversa, uma aula onde o mestre nos transportou pelo mundo, pela história, pela filosofia, pela literatura, por Antero e Pessoa, pela poesia, pela sua infância e pela sua errância… porque «saí de Portugal por causa de uma espécie de curiosidade intelectual e encontrei um reino quando afinal o verdadeiro reino era este onde estou». Mas essa conversa começou pelo princípio, pelo mundo maravilhoso da infância, quando a criança que brincava feliz no pequeno universo de São Pedro de Rio Seco, uma pequena aldeia raiana de Almeida, estava longe de sonhar que viria a ser um dos mais reconhecidos e esclarecidos pensadores portugueses contemporâneos – «sem mitificar a infância, o que, aliás, seria justo e natural, foi um tempo despreocupado, todo entregue à brincadeira, irresponsável. E depois veio a entrada na escola, onde «fui um menino aplicado», recordou o ensaísta, enquanto nos contava que «foi aqui que fiz a 4ª Classe, embora tenha feito a 3ª na Guarda. Os primeiros dez anos da minha vida foram passados nesta aldeia, muito pobre, muito representativa do nosso atraso, no sentido civilizacional do termo. Não havia água nem eletricidade. A água só foi posta na primeira presidência de Mário Soares, a eletricidade pouco antes. Havia uma grande diferença entre São Pedro e qualquer aldeia do outro lado da fronteira. Íamos lá fazer compras e já nos anos 30 tinham eletricidade: quase 50 anos de diferença. E aquilo era o faroeste deles», disse-nos entre sorrisos. De São Pedro do Rio Seco à Guarda, «que era como se fosse Nova Iorque», nessa descoberta para além do pequeno mundo da sua aldeia, da Lisboa do Colégio Militar à Coimbra dos anos 40, da geração neorealista às universidades francesas onde foi leitor de Português e estudioso da cultura ibérica e onde viveu as grandes discussões ideológicas do pós-guerra, ou o regresso a um Portugal de onde nunca partiu, mas a que não pensava regressar.
Expoente maior da cultura e do pensamento ibérico, ele foi «o gigante que nos desvendou Pessoa, Portugal e a Europa» deixando-nos um extraordinário legado, a todos, pela sua intelectualidade, mas fundamentalmente pelo seu humanismo e singela simplicidade, ele que foi, como disse Guilherme de Oliveira Martins, «a consciência da Europa». Obrigado professor!

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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