1. Como se cresce para a política em Portugal. Querem que conte uma história? Detecta-se um padrão: boy ou girl de origem não abastada. De pequenas vilas, cidades ou subúrbios. Estudantes metidos a líderes associativos. Funcionários subalternos metidos a estudantes. Um dia, dá-se o milagre. Boy ou girl meets partido político. A paixão nasce e intensifica-se. Vem o casamento, sob a égide de padrinhos influentes. Pouco depois, as inevitáveis escapadelas, com subsídios e intercâmbios pelo meio. Começam a partilhar fotos em que, plantados num púlpito, discursam em salas e auditórios, parecendo que tratam do futuro da pátria. Entretanto, agitam bandeiras nas ruas e salões. Ou despejam uns soundbites pelo megafone. Ou dizem banalidades clubístico partidárias, como papagaios ufanos, mas vazios. Alguns, mais videirinhos, não perdem tempo. Tornam-se cabeças de cartaz. Ou seja, fifis de um fifi de alguém. “Meritocracia é para totós”, dizem eles. “Temos é que tratar da vidinha!”. Ora bem! O dote vai engordando e chega o momento da barriguinha e do lugarzinho. A paixão esmorece e agiganta-se o cálculo. É preciso demonstrar que o rapaz ou a rapariga tem talento. Parecem upgrades do Conde de Abranhos da Regeneração: dizendo umas coisas “trabalhadas”; erudição qb; bajulação cirúrgica ou de arrasto; lembrar favores aos apaniguados e trocá-los com influentes; compor umas versalhadas de encomenda, cheias de ais e uis, para impressionar damas nos salões, etc. Agora basta transpor tudo isso para o século XXI. “Isto está no papo”, vai pensando o boy ou a girl com os seus botões. Enquanto carrega no controle remoto do portão da vivenda, tripulando o seu audiozito topo de gama. E a história vai-se desenrolando. Aparece nos recitativos, trabalha no duro nos bastidores, cria a teia. Um dia, quem sabe, tantos favores vão-se pagar! E muitos outros hão-de criar outros tantos. Num Congresso, quem sabe, líder! “Ó pá, agora só tenho é fazer-me de morto devotado e tá a andar!”
2. Tenho em mãos uns trabalhos académicos para apresentar no mestrado em Ciência Política. Redigir textos de carácter científico, com uma metodologia própria, é para mim bastante complicado. Para começar, exige-se uma justificação permanente. Ou seja, dizer sempre porque se fez esta opção e não aquela, porque se seguiu este autor e não outro. Em peças jurídicas isto não existe. Ou se existe, é acessório. Não se exige objectividade, mas clareza. Não há demonstrações empíricas, mas arrumação de conceitos. Não se buscam certezas, mas aproximações razoáveis. Mas é quando escrevo textos de carácter literário que as diferenças são maiores. Neste caso, fujo de dar justificações como o diabo da cruz. Um texto literário justifica-se a si próprio. Mas no método há parecenças com a elaboração de um projecto de investigação. É necessário eliminar gorduras, evitar generalizações, esculpir formas puras, mas sobretudo, descrever a realidade sem o auxílio de conceitos. Conseguir desmontar o real com total despojamento, como se pintássemos um quadro naturalista. Para tal, socorro-me de um instrumento perfeito: os relatórios forenses da medicina legal.
3. Recentemente, Mariana Mortágua veio assumir publicamente a sua orientação sexual. Este tipo de declarações banalizou-se. E ainda bem. Mas esta, em particular, merece uma nota. A bloquista parece ter escolhido o momento politicamente adequado para a sua “confissão”. Utilizando a técnica do fogo controlado. Até aí, nada de novo. O problema está na maneira como o faz. Recorrendo a uma vitimização passada e futura. Para acenar com a sua juventude e ser filha de quem é. Uma mistura explosiva, que anuncia e prepara uma espécie de confrontação temerária de uma opinião pública supostamente hostil. Do género, “vou continuar no meu caminho, digam vocês o que disserem! Não são os vossos ataques e o vosso preconceito que me vão destruir politicamente!” Este heroísmo por antecipação é um modus operandi muito comum nos ambientes ideológicos que MM representa. Ou seja, nada a obriga, enquanto figura pública, a revelar aspectos da sua vida privada. Mas se optar por fazê-lo – porque, em consciência, acha isso importante – o melhor é optar pela neutralidade segura de si. Nunca construir uma narrativa agressiva, calculista. Uma bandeira política. Porém, com efeito placebo. É que, vendo bem, “who cares”?
4. É fundamental nunca abdicar do essencial, para se poder ser perdulário com o acessório. Mas esse equilíbrio dinâmico só funciona se o peso estiver no que se descarta e a leveza no que se transporta. Quando escrevo, é frequente retirar palavras e acrescentar paisagens. E nas palavras que sobram, exercitadas e enxutas, misturo um perfume que as orienta na névoa em que as deixo perder de mim. Mas essa fragrância não é gratuita. Se as palavras forem de guerra, ao leitor chegará a cordite dos explosivos, não o sangue das vítimas. Se forem de amor, ao aroma essencial faltará sempre um toque final, que só o leitor pode criar.
* No calendário das árvores celta significa salgueiro
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia